Contramão HUB

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Por Bianca Rolff

Hoje, pela primeira vez em meus 20 anos, vi o meu coração bater. Não o ouvi ou senti, mas vi. Olhando meu peito nu após um banho quente, notei entre um seio e outro minha pele pulando, indo e voltando, exatamente como nos desenhos animados ou seriados médicos.

Fiquei ali, de frente para o espelho embaçado, olhando meu coração com maravilhamento. Toquei minha pele com cuidado, achando que qualquer movimento poderia machucá-lo. Meu coração existia e parecia muito real.

Não que antes eu achasse que ele era invenção da ciência, dessas que poucos puderam efetivamente comprovar, como saber se a terra é mesmo azul do espaço ou se há uma bandeira americana na Lua. Mas até o momento, meu coração apenas batia, nunca havia marcado um encontro.

E hoje lá estava ele, dizendo para mim com todas as letras que não ficava do lado esquerdo do peito, mas basicamente no meio. Por algum motivo, ele se apresentou, e eu morri de medo!

É que até então, não achava que meu corpo poderia ser tão frágil. Minha caixa torácica sempre fora minha heroína, escudo protetor feito com algo mais poderoso que os materiais capazes de ferir super-homens ou wolverines. Mas, pulando de encontro a mim como fizera hoje, meu coração me mostrou que viver é um golpe de sorte. Talvez eu pense duas vezes em entrar para o time de hóquei ou esgrima. Esse peito pulando é algo bastante peculiar. Mas por outro lado, acho que vou mesmo me inscrever para o curso de dança.

Deitei em minha cama velha, de colchão gasto e me deixei cochilar… Não sei quanto tempo passou, mas acordei suando, aparentemente finalizando um grito que se perdeu em algum lugar do meu bairro pacato e juvenil. Coloquei imediatamente a mão sobre o peito, sentindo as batidas agitadas ali dentro e fui correndo para a frente do espelho, puxando a blusa pela cabeça e me olhando. Eu sentia cada um dos pulos, era questão de instantes para vê-lo, de novo, com meus próprios olhos.

Não o vi. Ouvi, senti, mas não vi aquele movimento de ir e vir que tanto me arregalara os olhos mais cedo. A pulsação voltou ao normal, eu voltei para a minha cama e permaneci no escuro.

Talvez esse fosse um fenômeno raro, tipo a passagem dos cometas. Talvez aparição única. Eu tinha visto, mesmo? Virei de lado e dormi.
Amanhã seria meu primeiro dia de férias.

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Por Débora Gomes – . as cores dela . – Parceira Contramão HUB

Salvador,

sinto sua falta, principalmente quando o tempo ameaça ser janeiro o ano todo. e se te escrevo assim, enquanto ainda amanhece, é porque no fundo, ainda espero que cê se recomponha e decida vir antes que o domingo acabe. Bisa me disse, num bilhete em papel manteiga, todo bordado nas beiras com delicadas flores de abril, que devo endireitar o corpo e ir embora, sem olhar pra trás. que esse teu coração de mundo, nunca vai desejar encontrar abrigo. e que do tanto que aguardo passar mais um verão, verei apenas meu coração se tornar quebradiço, como as vidraças das janelas mais antigas.

não sei se acredito… e ainda olho teu retrato como quem se reconhece pelas beiras do tempo e se aconchega ali, sem prazos ou pressa de viver. no entanto, por via das dúvidas, não falo mais teu nome há alguns dias, nem escrevo mais poemas demorados, rimados em canções. tenho tentado, juro! e lhe conto que esquecer é caminho sem volta, e isso também apavora.

a verdade é que, por mal, perco a parte doce do peito sempre que cê me some. e vivo os dias numa amargura, uma tristeza, principalmente nessa época em que tudo evapora com as gotas da chuva. tenho ataques de ansiedade, choro sem motivos, saio pouco de casa, uso bastante alfazema e desaprendo o jeito: de rir, de ouvir, de falar daquelas coisas bonitas que cê (já) tanto se alegrou em ouvir.

eu tenho medo, Salvador. de nunca mais conseguir ser a mesma pessoa, depois de aceitar que a gente virou caminho sem volta. então, peço que repense tua solidão antes que Bisa me escreva de novo, e me convença de que é melhor silenciar meu coração e te deixar partir. eu não saberia mais contar estrelas sem contar com você…

é (sempre!) com amor,
Alice,

 

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Por Bianca Rolff – Gauche – Parceira Contramão HUB

 

Prezado Destinatário,

Esta carta se dirige a você, você mesmo, que por algum motivo iniciou a sua leitura e espero possa prosseguir até o final. Pode parecer loucura escrever uma carta para um alguém desconhecido, mas a esta altura, qualquer um tem o poder de se tornar um amigo em potencial, uma ajuda muito bem vinda ou pelo menos alguém com um mínimo de interesse.
Esta é uma carta de amor. Mas não desanime logo aqui! Como bom escritor que sou, “romântico” como diriam meus ex amigos mais próximos, ela possui enredo triste e desastroso. Não venho por meio dela pedir a você, destinatário de minhas palavras, que se case comigo, que se padeça do meu sofrimento catastrófico, ou mesmo declarar o meu amor por você, aquele amor platônico, de observação e genérico que todos sentimos ao menos uma vez na vida e que, muitas vezes, é mais real do que um amor vivido.
Não é isso.
Esta é uma carta de amor. Mas de amor-próprio. Ou talvez seja o compartilhamento de um relato de quem precisa a cada minuto que passa de um parceiro de ouvidos (no caso, de olhos, já que escrevo esta carta)  na caça ao diagnóstico mais importante de minha vida.
Em algum momento de meu passado recente, iniciei uma saga digna de um poeta típico, como diriam os meus ex amigos mais próximos. Por razões múltiplas, muitas delas oriundas de decepções relacionadas a outras pessoas e também de expectativas mínimas criadas, mas que, em acúmulo se tornaram um grande queda (e não quebra) de expectativa, iniciei uma descida aos níveis do Inferno de Dante e não consegui emergir à superfície. É complicado e nem sempre ético querer colocar a culpa pelo seu fracasso no próximo mais próximo, mas muitas vezes, é o que dá início a uma grande reação em cadeia. É complicado, mas bem comum e compreensível.
Há alguns dias, entretanto, passados os momentos de luto por mim mesmo e meus relacionamentos falecidos, acordei com uma grande câimbra no lado esquerdo do corpo, algo que me impedia completamente de sair da cama. Você deve pensar – assim como eu também pensei – que pudesse ser um derrame, ou qualquer coisa relacionada ao coração, como estamos cansados de ver nesses seriados médicos da TV.  De fato, vim a descobrir por conta própria no mesmo dia, tratava-se de um problema no coração. Mas nada de derrame. Eu estava sofrendo de falta de amor-próprio. É como falta de potássio, vitamina C, glicose, só que afeta diretamente a parte do coração que é abstrata. Não o órgão pulsante que temos dentro do peito, mas o coração idealizado por nós como local centralizador dos sentimentos, local onde guardamos todas as nossas tristezas, alegrias, surpresas e decepções.
Nos primeiros instantes, achei que se tratava de ausência de amor para dar. Eu tinha passado por um momento de desilusão tão grande, daqueles em que você aposta a mão de cartas que não tem, só por um vislumbre de felicidade, mas a jogada se transmuta num grande blefe invertido e você termina sem um tostão no bolso e um vazio ainda maior no peito, onde deveria morar aquela pessoa que não mais está lá. A desilusão foi tamanha a ponto de eu não mais olhar com vontade para as coisas interessantes ao meu redor, a ponto de uma simples conversa se tornar perigosa e frágil, ou de minhas mãos tremerem com a simples menção do responsável pela aposta mais alta da minha vida. Esqueceram foi de me avisar que às vezes, os dados podem estar viciados e isso nem sempre é uma coisa boa.
Contudo, aos poucos fui percebendo – em análise profunda, já que sair da cama eu não conseguia, – que esse amor para dar eu tinha e sobrava. Por isso mesmo eu sofria tanto. Havia em mim tamanho acúmulo de amor que eu não sabia como utilizá-lo, e por isso mesmo trancava-o dentro de mim. Seria uma questão de tempo para que eu conseguisse finalmente canalizá-lo para uma boa pessoa, alguém cujo amor por mim também seria em retribuição, alguém cujas vibrações fizessem as cordas da arpa que havia dentro do meu estômago vibrarem no tom correto da melodia. Ora, a vida é assim desde sempre: sempre iremos sofrer por amor (ou por isso que achamos ser amor, mas na verdade é um genérico bem fajuto).
Pois bem, só me sobrava a fatídica opção: a câimbra em meu lado esquerdo indicava ausência de amor, mas por mim mesmo. Você, a esta altura – se é que chegou até aqui – deve estar se perguntando como alguém pode ficar com câimbras devido à falta de amor-próprio. Pois eu lhe explico.
Para tentar preencher o buraco que se instaurara dentro de mim ante à perda de um grande amor, eu comecei a tentar preenchê-lo desesperada e rapidamente. Com paixões fulminantes de uma noite, várias por semana, a grande maioria delas resultando em pessoas semelhantes a mim (pois sim, eu era a queda de expectativa delas, gerando um ciclo vicioso e muito, muito trágico para a humanidade), com drinks quentes acrescentados de grandes enxaquecas e perdas de memória, com trabalho do qual eu não precisaria em momento algum da vida, mas que ocupava a minha cabeça e não me deixava pensar naquilo que, por pior que fosse, ainda me fazia ter certeza de estar vivo. É engraçado, pensando agora com uma certa distância, quase como se psicanalista de mim mesmo, como buscamos placebos dos mais diversos para as nossas dores. Por um tempo, eles funcionam perfeitamente, até nos fazem achar que finalmente somos capazes de fazer aquela canalização do amor para outras pessoas e coisas de novo. Mas quando percebemos que é placebo…
A gente pensa em canalizar sentimentos para todos os lugares, menos para onde realmente interessa: para nós mesmos. E então: câimbra!
Eu não fazia ideia de como curar aquilo. Tentei de tudo: ligar para o médico, fazer massagem, chamar a ambulância, o corpo de bombeiros, dar entrevista na rádio à procura de conselhos, até mesmo ligar para a minha antiga grande razão de existência pedindo por clemência (ou mesmo para dizer-lhe algumas verdades entaladas que de nada resolveriam). Nada disso adiantava e nem adiantou. Busquei ajuda espiritual, tentei ouvir mantras ou mesmo alguns exercícios mais básicos de yoga… Nada.

A câimbra, como seria suposto, deveria passar em algum tempo. Pelo menos naquele dia. Mas durou. Estendeu-se. Eternizou-se no (meu) tempo e espaço, impedindo-me de fazer quaisquer coisas, inclusive reagir. Nunca achei que fosse tão difícil lidar com a ausência de algo diretamente ligado a mim, mas justamente por a câimbra ser a única coisa que me incomoda de fato, na ausência desse sentimento por mim mesmo (se não fosse por ela, eu nem mesmo notaria a ausência) é que eu não me importaria de continuar neste estado auto-sentimental quase vegetativo. No momento, estou quase vegetando fisicamente, também.

Sabendo que, factualmente, a decisão que tomei talvez surtisse o mesmíssimo efeito de ligar para a estação de rádio mais badalada à pedido de um conselho ou uma ajuda, eis que aqui estou, redigindo esta carta (até mesmo a mais lenta das galinhas cataria os milhos mais agilmente do que eu a lhe escrever, caríssimo destinatário). Matemático que sou, sei bem das probabilidades ínfimas de receber uma resposta, um conselho ou alguma quebra de inércia de sua parte, mas ainda assim, tento como recurso improvável, mas existente. Pedi que deixassem esta carta no meio das tantas cartas de Dia dos Namorados na porta da livraria do shopping, na esperança de que você a leia e não a devolva (afinal, descobri que não sou o único a escrever cartas a desconhecidos, logo, há uma luz no fim do túnel).

Pense, se não como uma carta de amor, mas como uma questão de saúde privada. Afinal, não mexo meu lado esquerdo e bem… de gauche, basta Drummond.

No aguardo de uma resposta o mais breve possível. Esperançoso.

Alberto G.

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Por  Jean Lescano – Poligrafias – Parceiros Contramão HUB

Eu sei que já conversamos sobre isso várias vezes, e eu até pediria desculpas por tudo o que vou falar, imagino sua feição ao ler esse texto. Eu precisava desabafar, já que com você é sempre do teu jeito e no seu tempo. Nós precisamos conversar, mesmo que por textos…

Hey, vem cá. Senta aqui.

Eu também já passei por maus bocados. Eu deixei muita gente partir por conta disso. Você sabe, eu sou fechado e detentor de meus próprios sentimentos e prazeres. No fundo, sei que isso me priva de ser muito feliz. Eu entendo bem que no fundo, talvez, nós dois sabemos:  você só quer me proteger.

E eu nem sei bem do quê. Você abraça seus problemas e os deixa só para ti, como se fosse uma criança controlando seu brinquedo mais legal. Você s[o quer me proteger de coisas que te preocupam e te estraçalham por dentro. Você só quer me proteger da verdade:  você não me quer.

Não como eu imaginei que queria.

E, no fundo mesmo? Eu não posso te segurar comigo.

Você não precisa me contar o motivo pelo qual mergulha em uma agenda lotada de amigos e rolês, como nem por um momento para em casa pra eu te surpreender em um sábado a noite, pois como eu disse, você só quer me proteger e eu só quero teu bem. É que agora é oficial, agora eu me dei conta que quem não quer mais viver assim empurrando as coisas com a barriga sou eu; eu não consigo simplesmente parar de fantasiar as coisas e no final tomar uma dose de realidade. Eu não quero mais acordar com ressaca de sentimentos.

Se você amasse, no fundo, eu saberia. Se você quisesse, eu saberia. Nunca é seu momento, nunca. Hoje é não, amanhã também. E eu me dei conta de uma coisa: quem ama não faz joguinho, apenas deixa fluir, sem medo do passado, apenas se joga.

Quem ama, não vai se ligar ao passado. Quem ama é futuro.

Eu nunca quis ter você como minha namorada pra ser um troféu. Não te queria pra correr o risco de reviver teu passado. Eu queria uma chance pra mostrar o quão sensacional tu é.

E tá sendo muito legal até agora, de verdade, foi tudo especial!

Mas eu não consigo e, pra ser sincero, não sei nem se você vai ler isso. No fundo, torço que leia e entenda o que nunca consegui te falar, mas também queria que não visse. Conhecendo um pouco de você, ví que não gosta de ser confrontada.

E, no fundo mesmo? Eu não posso te segurar comigo.

Eu não vou te cobrar mais ,muito menos privar você de suas vontades. Infelizmente terei de aceitar o fato que, pra sua família, sou só mais um conhecido. Indireta? Nunca mais. Eu vou seguir como já seguia antes de você aparecer.

Mas caso tu volte, sinceramente não saberei reagir. O problema em afastar quem não ama é esse, a gente nunca sabe como superar. Mas supera. Mas numa dessas eu posso estar tão longe que você não conseguirá me alcançar; tão longe que não vou conseguir te atender quando me telefonar. Ou mesmo estarei muito perto, porém vivendo em um mundo que não há espaço para eu ficar.

0 716

Por Débora Gomes – . as cores dela . – Parceira Contramão HUB

… aí o telefone tocou e era ele pra perguntar como as coisas estavam e desejar um bom Natal.
E ela,com tantas coisas que tinha pra dizer, silenciou e apenas ouviu, dando um sorriso de quem não sabia o que fazer.
Estava assustada com aquilo tudo tão de repente e meio boba que é perguntou pela viagem como se isso fosse só.
E ele respondeu daquele jeito calmo e num pulo perguntou quando iria visitá-lo. E ainda mais boba, nem sequer respondeu e num surto invisível, lhe devolveu a mesma pergunta e de janeiro, ele pulou pro carnaval e do carnaval ela sabe que vai pular pra Semana Santa e vai pulando de mês em mês até chegar mais um Natal.
Ele não lhe devolveu a vida dessa vez. Ele só a fez chorar… um choro engasgado vindo de dentro do peito como se algo por dentro tivesse começado a sangrar. E doía ouvir de novo a voz que ela já há algum tempo quase esquecia…
Ele não ouviu ela chorar…
Enquanto ele falava ela engolia lágrima por lágrima enquanto o mundo em volta ia sumindo. Se despediram… um beijo, um abraço, um ‘espero te ver em breve’. Aí ela não teve mais alegria nenhuma no dia, e se teve, nem percebeu qualquer momento feliz. Ninguém viu que ela chorou. Deu um abraço em sua mãe, disse que estava triste e ouviu dizerem que tristeza passa…
No outro dia, nem acordar queria. Sentiu o peso do fim assim que abriu os olhos. Alguma coisa por dentro dizia que acabou e que a vida precisava continuar. Aí ela se perguntou continuar como! E se levantou num suspiro e percebeu que iria demorar pra passar. Vai ligar pra ele no fim do dia e pedir dois favores que ontem se esqueceu. E só. É o fim. Ela já não o reconhece mais.
A moça do sentimento maior do mundo vai pegar as malas que deixou pra trás e seguir a vida. Não sabe ainda pra onde vai, mas espera que lá não exista lugar pra tantas lágrimas nem tanta dor. Mas no momento ela se fechou e parou de acreditar…
Vai ali! Entrar dentro de si e tentar achar um restinho de vida dentro do coração…

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Por Samuel Aguiar – Poligrafias – Parceiros Contramão HUB

Em um dia cruelmente tedioso, a internet parou de funcionar. Não a Internet inteira, aquela com i maiúsculo, mas a parte dela que reside num daqueles aparelhos pretos que povoam o digníssimo “quartinho”. Num dia normal, de temperatura agradável e silêncio ensurdecedor, as luzinhas verdes do modem piscariam agitadas e alegres, mas acho que o cansaço dominou até o mais feliz dos dispositivos.

O problema é que aqui, no interior, o sinal de telefonia celular só dá as caras quando quer. À medida que a internet perdia potência, os cantores do Spotify pareciam mergulhar mais fundo. O chiado dos mergulhadores continuou até que, sem aguentar o próprio barulho, cessou. Foi mais ou menos nesse momento que decidi, como cientista de computação, resolver o problema.

Admito, sou cheio de promessas. Disse aos meus pais que daria um jeito na situação, mas sinceramente não fazia ideia do que tinha acontecido. Os olhares calmos e atentos foram gradativamente substituídos pelo semblante de desespero depois que, por três ou quatro vezes, reiniciei os apetrechos e ainda assim não vi o maldito dinossauro saltitante desaparecer das nossas telas. Passados uns trinta minutos, cheguei a pensar que nem uma desfibrilação ressuscitaria a minha rede. Com a mão no telefone para acionar a assistência técnica, recebi a iluminação divina: substituir os cabos de rede.

Bom, no final das contas, acho que ser um entusiasta dos computadores salvou meu dia. Busquei a caixa de tecnologias reservas, encontrei tudo que precisava e encarei a árdua tarefa de desembolar, retirar e substituir os cabos que poderiam ter dado defeito. Um minutinho depois e as encantadoras luzes verdes voltaram a dançar felizes naquele quarto inóspito. A questão é que, como escritor e divagador, fiquei impressionado com o tosco caráter físico da situação. É desconcertante imaginar que um ou dois cabos podem me conectar ou desconectar da Internet, a mais poderosa e ágil das redes de informação do planeta.

Confesso que a essência da coisa – essa que alguns cabos fazem funcionar – me escapava. Sempre estive conectado, mas a realidade tangível de todo o processo nunca me passou pela cabeça. As luzes verdes me diziam que a Internet – como conceito abstrato e indiscutível – estava ligada. Estive, desde muito novo, conectado a alguma coisa que eu nunca soube o que era. Na faculdade – ou talvez um pouco antes – tomei conhecimento de que existem diversos datacenters por aí, espalhados em lugares distantes e meio inimagináveis. Dizem que é por lá que se hospedam as informações que acessamos todos os dias, mas eu não sei é bem assim.

Dois bilhões de pessoas usam a tão aclamada Internet diariamente. Imagino que para a grande maior parte delas, o aspecto físico de uma vastidão totalmente sem corpo e sem características definidas não é importante. A grande complicação é que, eu e você, sem entendermos como essa estrutura funciona, nos tornamos incapazes de refletir sobre seus limites. Estranhamente, encontrei um dos limites da minha conexão. Minha internet estava estragada, deixou de ser planeta pra ser uma ilha momentaneamente incomunicável.

A interrupção do meu estado de tédio foi, no mínimo, oportuna. Depois que as músicas voltaram a tocar sem chiados, percebi que, por anos, a Internet foi uma exceção aos meus instintos curiosos. A rede das redes sempre foi uma ideia facilmente aceitável, dessas que vêm junto com as novidades tecnológicas e pouco se importam em divulgar o próprio comportamento. Sempre esteve ali, no computador, no celular, na televisão e em praticamente tudo que tem tela. Havia o mundo virtual e o mundo físico, o ciberespaço e os lugares reais. Nunca pensei na interseção entre eles.

E se a Internet não for um lugar qualquer, invisível e inalcançável, mas algum lugar? Tenho certeza que a Internet não é só um emaranhado de cabos, mas também não é totalmente wireless. A Internet não está em toda parte, não dá acesso a todos e pode não ser tão democrática quanto dizem que é.

Existem tubos que ligam Londres a Nova Iorque. Tubos que ligam o Google ao Facebook. Existem prédios cheios de cabos e existem centenas de milhares de quilômetros de estradas e ferrovias cujas margens contêm tubos enterrados. Tubos dentro dos quais encontramos fibras ópticas. Dentro das fibras, luz. Codificados na luz, estamos nós – cada vez mais perdidos nessa imensidão de dados.

Sinceramente, fico embasbacado com as metáforas que a televisão anda fazendo sobre a rede. Desde 1990, quando a Internet de fato decolou, as placas de “superestrada da informação” foram derrubadas. Faz tempo que pensamos na internet como uma teia de seda em que cada lugar é igualmente acessível aos outros. Imaginamos as nossas conexões como imediatas e completas – a não ser quando não ocorrem. É tão raro não poder chegar a uma parte qualquer da Internet a partir de outra que ela mesma parece não ter parte alguma.

Pensando sobre todo esse “silício que nos cerca”, cheguei à conclusão que a Internet pode até não fazer sentido pra maioria das pessoas, mas há uma pitada conceitual que converge sempre no mesmo sentido. A rede das redes é, no ideário do povo, a ágora digital, é onde todos os usuários se encontram e têm voz, é onde devem florescer os ímpetos democráticos.

Talvez por isso eu tenha ficado extremamente assustado com a notícia de que os Estados Unidos podem abolir a neutralidade da rede. A ideia é tão contrária à lógica em que pensamos nossas conexões – mesmo que sem entendê-las a fundo – que fica difícil imaginar como uma proposta dessas passou pelo primeiro estágio de aprovação. Pior é perceber que a mídia tradicional, com todo aquele desejo de informar e elucidar os fatos, simplesmente ignorou a lógica, os valores e o próprio conceito – socialmente forjado – da Internet.

A proposta de explicação que inundou todos os veículos midiáticos regrediu violentamente no tempo, e insistiu que a Internet é uma superestrada. Não basta explicar que numa rede sem neutralidade os dados podem ter vias prioritárias. Isso é menosprezar a essência de interconectividade e de amplidão e ignorar completamente a mais amedrontadora das possibilidades: a perda de conexões.

Imaginar a Internet como uma teia parece-me muito mais justo e prático, porque evidencia a necessidade óbvia de podermos nos comunicar com qualquer parte da malha. Mais que explicitar que sites e empresas poderiam ter maior velocidade de acesso e transmissão de dados, eu gostaria que a televisão e os jornais deixassem claro que numa rede sem neutralidade, a teia pode e muito provavelmente será cortada. Nós, usuários, poderemos ter que pagar taxas extras para acessar diversos sites – isto é, se eles ainda puderem ser acessados.

Monopólio. Preços Altos. Censura. Alienação. Extermínio dos pequenos produtores de conteúdo. Não há necessidade de explicar os resultados mais que evidentes da possível aceitação de uma proposta como essa.

Faz uns dias que a internet parou de funcionar aqui em casa. Agora, o tédio passou. Ainda não entendi direito o que é essa tal Internet com i maiúsculo, mas fico feliz em poder me conectar a ela com um ou dois cabos. Se você está lendo este texto, provavelmente tá conectado também. É legal podermos nos encontrar, é legal termos voz, é legal acessarmos esse algum lugar. Aqui, estamos em pé de igualdade. Daqui, podemos ir a qualquer outro canto. Isso é neutralidade, isso é o que nós precisamos da Internet.