“Cantei, cantei, jamais cantei tão lindo assim. Só sei que todo cabaré me aplaudiu de pé quando cheguei ao fim”.
Cauby Peixoto foi o primeiro cantor a gravar rock em português, em 1957. Com 84 anos performáticos de idade, é mestre em brilhos, perucas e apresentações marcantes. Show-men desde o início do século passado, o cantor já participou de filmes musicais e interpretou canções de Chico Buarque, como Bastidores, uma das mais pedidas recentemente em seus shows.
Documentário
Começaria tudo outra vez, um dos maiores sucessos do repertório de Cauby Peixoto é o título do documentário de Nelson Hoineff que retrata a vida do artista. O longa é composto por trechos de shows, entrevistas com os poucos amigos do cantor e, claro, falas inéditas do artista que roubou corações no meio do século passado. O filme esteve, recentemente, em cartaz no Cine centoequatro, em Belo Horizonte, e tem lugar garantido em outras salas de cinema de todo o Brasil.
O diretor Hoineff, idealizador e diretor do projeto, em entrevista ao CONTRAMÃO, contou sobre todo o processo de produção de Cauby – Começaria Tudo Outra Vez e sobre sua experiência ao lidar com o cantor.
CONTRAMÃO – Como foi quanto tempo durou o processo de idealização do documentário? Como o nome Cauby – Começaria tudo outra vez foi definido e por quê?
Nelson Hoineff – O processo todo, da idealização ao final da produção, levou quase quatro anos. Esse tempo todo deve-se a duas razões. Em primeiro lugar, a negociação foi longa; Cauby e sua empresária não tinham certeza sobre nós. Até que os convidei para a festa de lançamento do Alo, Alo, Terezinha!, filme que fizemos sobre o Chacrinha. Foi ali que eles ficaram mais seguros e ganhamos a autorização. Em segundo lugar, eu queria acompanhar o Cauby por um longo tempo, não queria me limitar a gravar dois ou três shows no mesmo lugar. Fizemos isso de 2010 a 2014. Foi o tempo exato para alcançar os resultados que eu pretendia.
CONTRAMÃO – Ao longo das gravações, Cauby Peixoto foi se “abrindo” mais? Você conseguiu extrair do cantor tudo o que queria ou houve algum tipo de bloqueio por parte dele?
Nelson Hoineff – Essa é uma pergunta essencial. O começo foi muito difícil. Por um lado, Cauby ainda não tinha plena confiança em mim. Por outro fui percebendo que eles é muito reservado mesmo, de uma forma que que eu nunca tinha visto. O curioso é que eu me considero um autor capaz de extrair tudo das pessoas, como fiz ao longo de mais de 400 episódios da série “Documento Especial”. Mas o Cauby não se abria. Fiquei desesperado e fui fazer queixa à irmã dele, Andiara. Para completar meu desespero ela me respondeu da seguinte forma: “Ah, Nelson, o Cauby é assim mesmo. Não sai de casa, não tem amigos…” Eu lhe disse: ”Não é possível, todo mundo tem pelo menos um amigo”. E a Andiara: “Bem, talvez o Agnaldo Timóteo”. Aquilo foi música para meus ouvidos. O Timóteo é meu amigo e uma grande figura. Fui conversar com ele sobre o Cauby e ouvi o seguinte: “Nelson, o Cauby é meu amigo há 54 anos e eu não sei absolutamente nada sobre ele”. Gostei daquilo, porque estabeleceu-se um embate entre o Cauby e eu. Ele determinado a não falar nada, e eu determinado a extrair tudo. Francamente, acho que ganhei essa disputa. Aos poucos, o Cauby foi ganhando confiança em mim e acabamos transitando num clima delicioso e extraindo0 dele coisas que ele jamais havia dito.
CONTRAMÃO – Para você, qual a importância de um documento audiovisual sobre a trajetória de um dos maiores cantores do país e um dos únicos ainda vivos da época de ouro do rádio?
Nelson Hoineff – Acho que essa é uma importante questão. A memória do brasileiro é muito curta, em grande parte justamente pela ausência de documentários mais ricos, que mostrem coisas substanciais sobre seus personagens. Cauby é um personagem riquíssimo, inesgotável. Em certo momento, tínhamos mais de 200 horas de material, de arquivo ou original. Reduzir tudo isso a pouco menos de duas horas mantendo a substância era um desafio muito grande. Finalmente chegamos ao recorte que eu queria. Algumas das pessoas que trabalhavam comigo tinham 20 anos, jamais tinham ouvido falar de Cauby e ao longo do filme ficaram entusiasmadas. Compreendi então que o filme estava atingido a todos, que tínhamos conseguido fazer algo que efetivamente comprimisse a essência desse artista único na música brasileira.
CONTRAMÃO – Cauby é um cantor performático. Uma de suas músicas, composta por Chico Buarque, retrata esse seu lado, Bastidores. Para você, essa música é um retrato da vida de Cauby?
Nelson Hoineff – É um retrato extraordinário. Cauby entendeu isso e canta Bastidores como nenhuma outra p0essoa poderia fazer. Essa é mais uma de suas características admiráveis. Cauby entende o que canta, sabe exatamente do que está falando. Reconheço isso em poucos artistas. Bethânia, Caetano, João, por exemplo. Cauby faz parte desse grupo. Por isso, quando canta algo como “Bastidores”, que fala sobre sí mesmo, é capaz de levar as plateias à loucura.
CONTRAMÃO – Cauby contou sobre suas experiências homossexuais no documentário? Como aconteceu e como ele contou?
Nelson Hoineff – Isso faz parte do longo embate para extrair algo dele. Todo dia eu dizia: “Cauby, fale sobre seus amores”. Ele respondia: “Meus amores são minhas fãs”. E eu: “Cauby, não é isso”. E começava tudo de novo. Até que chegou um dia em que eu percebi que o terreno estava sendo preparado. A gente estava gravando algo sobre seu guarda-roupa, mostrando os ternos que ele usava. Isso no seu quarto, colocando os ternos sobre a cama. Cauby e eu já estávamos cada vez mais próximos, o gelo estava quase sendo quebrado. Num momento, nós dois estávamos sentados na cama, conversando como velhos amigos. Sua empresária, Nancy, havia nos dado uma folga: estava fora do quarto. Senti que era o momento. Começamos a falar sobre sua sexualidade, Cauby dez vezes mais receptivo do que eu imaginava. Nancy tentou entrar no quarto e eu bati a porta. Cauby então fez um discursos psicanalítico sobre sua sexualidade, da infância até os dias de hoje. Falou o que nunca tinha falado para ninguém ao longo de mais de 60 anos de carreira. Foi um momento chave para o filme.
CONTRAMÃO – Em resumo, como você definiria Cauby – Começaria Tudo Outra Vez?
Nelson Hoineff – Acredito que Cauby – começaria tudo outra vez seja um recorte fiel à carreira desse grande artista e sobretudo uma obra capaz de emocionar o público. Por isso, no momento em que dou essa entrevista, ele está há 11 semanas em cartaz, algo quase impensável para um documentário brasileiro. Fundamentalmente, o filme fala sobre a eternidade da obra de Cauby, seu eterno recomeço, sua capacidade de atingir jovens e velhos. Acho que conseguimos traduzir para o cinema a essência desse grande cantor.
História
Cauby Peixoto nasceu em Niterói em 1934. Veio de família de artistas e iniciou sua carreira na década de 1950. De nome completo Cauby Peixoto de Barros, sem o Barros no artístico, foi ídolo de muitas garotas na era de ouro do rádio e, ainda hoje, arranca suspiros do público em apresentações em São Paulo, onde canta as aclamadas Conceição e Bastidores, canções que o consagraram.
Por Gabriel da Silva