#CRÔNICA:

#CRÔNICA: [ D E U S ]

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Por Bianca Rolff – Gauche – Parceira Contramão HUB

Eu nunca quis ser Deus. Pensar em mim mesmo como alguém cujos ouvidos se enchem de lamúrias de fiéis, de pessoas desesperadas em busca de apoio e de todos aqueles que me procuram apenas nos momentos difíceis, nada disso nunca me interessou. Nem mesmo a sensação de onipotência, onipresença e onisciência, de meu poder misericordioso ou de ajuda, de demonstração de grandeza e importância serviam como chamariz para um título divino. Não, eu nunca quis ser Deus. Mas eu era.
 Não foi algo que escolhi, mas uma condição imodificável. Simplesmente era desse jeito, e não havia o que eu pudesse fazer para que isso se modificasse. Todos os dias me eram consumidos pelo dever de agir conforme as minhas atribuições, conforme os pressupostos não estabelecidos por Ninguém, mas existentes desde o início dos tempos. Em meu caso particular, cabia a mim ser um Deus obscuro, muito mais temido do que adorado, muito mais culpado do que bendito. Eu, dentre todos os Deuses, era o Deus da Morte.
Talvez o nome fosse carregado de uma aura sombria, contribuindo para uma má compreensão dos fatos, mas a verdade é que eu tinha, acima de tudo, a vida em minhas mãos. Cabia a mim decidir o caminho de cada um que andasse sobre a Terra, e no momento de sua morte, encaminhá-lo a uma das possíveis direções: o Céu o ou o Inferno. Não, não como nos livros sagrados humanos, não esta ideia pobre de detalhes sobre jardins e fogueiras, entre o azul e o vermelho, entre o Ar e o Fogo Infinito. Cabia a mim encaminhar cada alma que passasse pelas minhas mãos a um destino rumo à aliviante inexistência ou a permanência perpétua num limbo existencial. Eu era, como não podia deixar de ser, o fiel da balança. Era eu quem a pendia de uma lado para o outro, não existindo a possibilidade de um equilíbrio.
O tempo nunca correu para mim com a cronologia lógica humana, o que nunca me permitiu saber quanto tempo exato me consumiam pensamentos a respeito das minhas obrigações. Muito tempo eu passava pensando sobre a melhor forma de ser este Deus, de levar comigo o destino de cada um e de saber o momento certo de por fim à vida de quem passava por mim… Não era fácil…
No início dos tempos, eu era mais adorado, havia templos em meu nome e oferendas eram feitas a mim para que os corpos mortos fossem conduzidos ao fim adequado. Inúmeras religiões me nomeavam, eu possuía estátuas e desenhos gravados em pedra e era, muitas vezes, consumido por uma vontade infinita de me tornar invisível e esquecido. Não importava o quanto me bajulassem, o resultado jamais se influenciava pelas crenças humanas e em seus rituais de passagem. Isso, evidentemente, nunca ficou claro para eles. Mas com o tempo, eu fui sendo aos poucos devidamente negligenciado…
Não posso me dar ao luxo de dizer que fui pelos humanos esquecido, mas digo que, para o meu alívio, não mais fui adorado com tanta pompa e circunstância. Não… pensando bem, eu jamais poderia ser esquecido. Talvez eu fosse, cheguei inúmeras vezes à mesma conclusão, o único Deus lembrado insistentemente, ainda que muitos passassem a crer na existência de um Deus único. No fim, as maiores lamúrias vinham por e se dirigiam a mim. Todavia, eu agora era apenas “Deus”, aquele que não olhou por alguém, que não impediu que algo acontecesse, ou, em alguns casos, o “Deus misericordioso” e dos milagres.
No incontável tempo em que me debrucei sobre meus próprios pensamentos, exercitei a arte da probabilidade e da experiência. Dizer a mim mesmo qual a melhor forma de agir era sempre uma das maneiras de me manter ativo e à frente do meu tempo, ainda que esta expressão se tornasse inútil para quem tinha pela frente o infinito.
Foi então, que diante da humanidade em seu auge de desenvolvimento tecnológico e científico, um mundo em que os Deuses foram quase relegados a segundo plano, eu vi finalmente a melhor maneira de agir e de me sentir confortável com a minha posição. Controlar a existência da forma mais natural e confiante possível, tendo a vida em uma mão e a morte na outra. Exercendo meu poder divino de forma demasiadamente comum.
Sozinho, eu me preparava para mais uma noite em claro. Mais uma em que seria o fiel da balança, mais uma que, depois de um tempo, se esvaneceria como construções de areia, mas ficaria gravada em minha memória como todas as demais escolhas que fiz e decisões que tomei… Uma entre tantas as noites em que cumpri o meu destino imutável e divino. Foi quando a porta de vidro se abriu e uma voz conhecida me chamou:
– Tudo pronto, Doutor. A paciente já está na sala de operações.
Fonte da Imagem: Reprodução/thatsreallypossible

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