#CRÔNICA: Pote
Por: Kedria Garcia
Pote
Vamos lá, tudo começou com a Anne. Ela não parava quieta e sempre estava falando e falando. Falava com os olhos, com o corpo, falava comendo e principalmente dormindo.
“Se eu fosse azul seria gosto não de céu. ”
Seu medo era de se tornar prédio, viver parada, dura, triste, sempre observada por cotidianos corriqueiros e nunca tocada pela curiosidade. O triste era quando ela voava para casa, deixa um vazio tão grande no meu peito que mal sabia o que fazer. Eu a amava, queria ela por perto. Foi então que a coloquei em um pote! Sim! Em um pote, um potinho! E fiz de cordão para a ter sempre por perto. Pensava que ela não iria caber, talvez suas falas a afogariam ou, pior, quebrasse o vidro que demorei tanto tempo para fazer. Todas as noites abria o potinho para que suas falas saíssem, passava o dia esperando para dormir ao som de sua voz. Desesperei quando notei que sua fala saia cada vez mais fraca até que virou choro e silêncio.
Carol gostava de perguntas que não se têm resposta.
“É possível correr mais que o pensamento? ”
Espaçosa, ocupava todo o meu tempo com pensamentos mirabolantes.
“Café acorda a gente, qual bebida nos levanta para a vida? ”
Ela era um vendaval antes da tempestade, era vento que ia para todos os lugares, tocava as pessoas sem que elas pudessem sentir. Eu a adorei desde o primeiro olhar. Assim comecei a pensar em um potinho que não a matasse, era transparente e confortável. Todos os dias colocava ela para sentir o sol.
“Porque o cheiro não tem calor? ”
Com o passar dos dias suas perguntas foram ficando sem entonação e depois silêncio. Um dia chegando do trabalho a encontrei com uma interrogação amarrada na garganta.
Convencido em não curar minha solidão procurei o ombro amigo dos bares. Bebia em cada esquina toda a dor de ver os outros em uma bolha e meus potes apagados. Em um final de semana chuvoso, boteco as moscas, escutei uma risada gostosa daquelas que te faz levantar da cama em uma manhã cedo de domingo. O som da felicidade me ganhou. Sentei ao lado do dono desse prazer único e para minha surpresa ele me envolveu em uma madrugada leve e fugaz. Carlos entrou em minha vida chutando a porta da frente, abrindo as janelas e convidando o Sol para fazer uma festa. Estava disposto a tentar mais uma vez, comecei a construir um pote devagar. As gargalhas eram servidas no café da manhã, frescas e com sabor do despertar. Depois de quase um ano a pequena morada já estava pronta, cheia de furos para que pudesse respirar e maior, desta vez, daria certo. No dia seguinte, encontrei o corpo esmagado por uma porção de tristeza acumulada.
E foram tantas Annes, tantas Carois e um Carlos que acabei por colecionar postes mortos. Não entendia como, pois, sempre adaptava os potinhos para morarem. Como planta regava minha doçura e meu carinho todos os dias e ainda sim adoeceram e morreram. Talvez o meu erro tenha sido conhecer a vida que prende e fica e não a que se vai mas deixa um pouco do que se é para trás.
Espetacular a verve literária, parabéns!
Obrigado Paulo. A crônica é de um ex-aluno aqui da Una. Ele cursou jornalismo e se formou no final do ano passado.