A Lenda do Guardião do Tempo

A Lenda do Guardião do Tempo

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Por Bianca Rolff – Gauche – Parceira Contramão HUB

As histórias de fantasmas sempre serviram a específicos propósitos… Era o tipo de papo para quem queria assustar as crianças, ou manter longe das suas propriedades os arruaceiros da madrugada. Em noites específicas, pessoas em todo o mundo se reuniam em torno de fogueiras em campings para contações de histórias, algumas mais, outras menos convincentes, mas que no frio da noite mantinham a todos ao redor do fogo.
O que não contavam para essas pessoas é que enquanto elas permaneciam aquecidas pelas chamas das fogueiras e pelo calor das narrativas, coisas muito mais interessantes ocorriam em outros lugares…

 

***
Não muito longe do camping da cidade de Vila de Cristo, uma garotinha dos cabelos trançados lia seu livro preferido. Era noite de Dia das Bruxas, e todos os seus irmãos haviam ido para o camping, para a noite de contação de causos. Ela, porém, havia recusado o convite na esperança de ter uma noite inteira de silêncio para poder desfrutar de suas leituras.
Era quase meia-noite e os olhos da pequena menina começavam a lacrimejar, contrários a todos os seus esforços para se manter acordada. Decidida a não se render ao sono, como uma adulta faria, ela saiu debaixo de suas cobertas e, apesar do frio, passou direto pelo casaco dependurado na cabideira e foi em direção à cozinha. Ao passar pelo quarto dos pais, viu que ambos estavam em um sono profundo, e ela andou pé ante pé para não acordá-los.
Quando chegou à cozinha, dirigiu-se até a bancada e, na ponta dos pés, puxou a garrafa de café para junto do corpo. Não era fã de café como seus irmãos mais velhos, mas sabia que aquela bebida quente e forte mantinha as pessoas acordadas e atentas.

Pegou um copo de vidro em cima da pia e colocou metade do copo com café. Quando o bebeu, contudo, quase cuspiu. Estava frio e sem açúcar. Ficando na ponta dos pés, despejou o resto do líquido na pia e estava prestes a lavar o copo quando o viu, pelo vidro da janela.

Lá, entre as árvores do jardim. Um lobo branco, de olhos vermelhos e um brilho intenso vindo de seu peito.

A menina se arrepiou. Era a primeira vez que via um lobo, e aquele parecia muito diferente do lobo que lia em suas histórias favoritas. Foi até a porta da cozinha, abriu-a para a noite gélida e saiu para o jardim.

A sua camisolinha fina balançava com o vento, mas ela se encaminhou para onde o lobo estava, estático, encarando-a. Não tinha medo dele. Queria provar que era uma garota de coragem, inclusive para dizer aos seus irmãos mais velhos o que havia feito.

Ele, o lobo, permanecia parado. Seu pelo branco era a coisa mais bonita que ela já havia visto. Aproximando-se mais, a menina percebeu que o que ela vira brilhando no peito do lobo era na verdade uma corrente prateada, de onde pendia um relógio fechado. Ela sabia porque era igual o relógio de bolso do seu pai. Não se contendo mais de excitação, ela estendeu a mão para tocar o pelo macio do lobo.

Nesse instante, a lua saiu de trás das nuvens e clareou todo o jardim. Quando sua luz iluminou o lobo, algo muito mais impactante aconteceu. A mão da garotinha, que estava prestes a tocar o animal, atravessou-lhe, pegando o vento.

Piscando, a menina olhou para o lobo e engoliu um grito. Ele não tinha mais um corpo real. Era como um espírito, um fantasma fosco, por onde ela via o restante das árvores do jardim. Apenas os olhos do lobo pareciam não ter perdido o brilho vermelho como fogo.

Ao puxar sua mãozinha, ela tocou o pingente no pescoço do lobo. Então o pingente era real! Ela apertou a ponta superior do relógio e ele se abriu, revelando as horas.

Meia noite.

Um grito foi ouvido de dentro da casa, e a menina imediatamente correu de volta, trancando a porta da cozinha e nem mesmo olhando para trás. Subiu as escadas rapidamente e ao chegar no quarto de seus pais, viu a mãe de pé,  parada, com o olhar horrorizado.

– Ele… ele acordou…foi olhar as horas e…

Ao contornar a cama, a menina entendeu. Seu pai estava caído no chão, os olhos abertos, vidrados. De uma de suas mãos, pendia o relógio de bolso, aberto, marcando meia-noite.

A menina olhou pela janela, à procura do lobo, mas ele não estava mais ali.

A menina acordou, gritando. Ainda estava em sua cama, com o livro aberto sobre o colo. Ela olhou para o relógio em sua cabeceira. Ele marcava 23h57.

Saindo correndo, ela foi até o quarto de seus pais bem no momento em que seu pai estendia a mão para olhar o relógio de bolso.

A menina se jogou na frente dele, jogando-o para o lado e impedindo-o de abrir. Colocou o seu livro preferido sobre o colo do pai e, apontando para a história, disse:

– O Alba Lupus, papai. O guardião do tempo, que nas noites de lua cheia…

– … A cada 2150 anos, capta a vida de pessoas que olham para o relógio à meia noite, para manter a roda do tempo girando. Filha, isso é só uma lenda. Além do mais, eu que escrevi ela pra você, a partir de um sonho que tive com o meu relógio…

Um barulho oco foi ouvido e ambos olharam para o lado.

Caída no chão, com o relógio de pulso entre as mãos e os olhos vidrados, estava a mãe da garotinha.

Puxando o pai pelas mãos, a menina viu pela janela os olhos vermelhos do lobo desaparecerem, aos poucos, entre as árvores do jardim.

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