A Masmorra e a Flor

A Masmorra e a Flor

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Foto: Rafael Minkkinen

Por Bianca Rolff – Gauche – Parceira Contramão HUB

A luz finalmente entrou pela fresta no teto, e ela soube que mais um dia se iniciava. Com dificuldade, abriu os olhos grudados pelo choro da noite e sentiu o ardor da luminosidade, aquela mesma luz que outrora fazia de seus olhos os mais bonitos do Reino. Foi-se o tempo em que ela se banhava no amarelo solar, entranhando no corpo a força do astro rei e fazendo de si uma discípula devota e extremamente fiel. Nada mais era como antes, e ela agora lamentava cada momento em que sentia o iluminar do sol vindo de fora daquela masmorra.

Tentou se ajeitar melhor, mas o movimento a fez perder o equilíbrio e cair sobre o ombro esquerdo. O choque de dor passou pelo seu corpo como um raio numa tempestade de verão, e ela mordeu os lábios para não gritar. Seus braços, há tanto tempo presos às costas já não mais lhe serviam para alguma coisa, e ela mais uma vez deixou o tempo passar.

Não soube ao certo por quanto tempo permanecera deitada, mas o corpo aos poucos foi sendo tomado por um formigamento característico e ela soube que estava para acontecer.

Com uma dor lacinante, ela viu vários pontos se abrindo em seus braços, gotejando sua pele de vermelho. Em segundos que lhe pareceram a eternidade, eles estavam ali, retribuindo-lhe o olhar.

Espinhos.

Com a respiração ofegante, ela buscou se levantar, ao menos sentar-se de um jeito menos torto e desconfortável, uma busca por conforto que não chegava a existir, de fato. Olhou novamente para aqueles pequenos pontos pretos afiados em seus braços e, contrariando o que costumava fazer, chorou ainda durante o dia.

Diriam, muito tempo depois, que aquele choro fora ouvido em vários lugares do Reino e que havia trazido consigo uma nova era. Mas ela de nada soube e apenas deixou que as lágrimas caíssem em seu colo como gotas de chuva. Sabia que seu estado não era dos melhores, e depois de muito tempo sem pensar na realidade que a confrontava, ela deixou que os pensamentos tomassem conta de si.

Prenderam-na por ter espinhos. Por ser, dentre todas as moças do Reino, aquela com capacidade própria de defesa. Tentaram podá-la, “cortar o mal pela raiz”, mas de nada adiantou. A cada poda, mais espinhos nasciam, mais fortes ficavam e ela, ainda que feliz com a própria resistência, via-se em agonia pelo crescimento de espinhos maiores do que tinha sido ensinada a suportar.

Fechou os olhos e inspirou o ar frio e embolorado da masmorra. Sentiu uma gota fria de lágrima cair sobre seu pé descalço. Olhou para aquilo com curiosidade, vendo o pequeno ponto de água escorrer por entre seus dedos e cair no chão de terra batida. Fixou o olhar ali, quase se esquecendo do frio que a rodeava, do silêncio que a preenchia, do mundo que ela não mais via.
Então, esticou os braços o máximo que pôde para o lado e puxou de sua coxa um espinho remanescente da primeira leva. O único espinho restante dos originais e que por algum motivo passara despercebido nas podas pelas quais a submeteram. Numa coreografia dolorida e cheia de esperança, ela o jogou sobre o chão e o cobriu com o máximo de terra que conseguiu. Ao ver o resultado, chorou mais e mais, banhando o solo como nos tempos de colheita mais prósperos.

Sorrindo, deitou-se para um sono profundo, à espera do futuro que não mais lhe pertencia.

Sabe-se que naquele local, contrariando todas as espectativas, floresceu a mais bela flor do Reino, uma flor de cor amarela como o sol. Sabe-se também, como toda lenda que se preze, que o paradeiro da jovem que ali se mantinha nunca fora descoberto. Entretanto, nenhuma mulher jamais fora colocada em tal situação dali em diante, e diziam as línguas que o real motivo era não terem certeza se poderiam mantê-las, de fato, em cativeiro.

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