O entorpecimento em Flores de Xangai

O entorpecimento em Flores de Xangai

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Por Vitor Miranda

Se o cinema moderno tem muito mais proximidade com a narrativa não-linear, os tempos mortos, a realidade e o cotidiano, podemos dizer que o cinema contemporâneo eleva essas características a outros patamares cada vez mais distantes do cinema clássico que ainda domina o mercado. E Hou Hsiao-Hsien, cineasta taiwanês, talvez seja um dos principais destaques dessa nova forma de se quebrar as regras da mise-en-scène. Seus filmes buscam experiências, climas e atmosferas. Através de longos planos-sequências, ele constrói blocos de sensações com corpos que moldam narrativas através de sua materialidade. O conteúdo é evocado através da forma: observamos os personagens e nos relacionamos sensorialmente com eles através de sua movimentação corporal.

Em Flores de Xangai (1998), Hou Hsiao-Hsien talvez experimente um dos momentos mais radicais de sua mise-en-scène. Fazendo uma construção de época que salta aos olhos e adaptando um romance publicado em 1894, o filme se passa em quatro bordéis de luxo em que acompanhamos jogos, negociações, triângulos amorosos, rituais coletivos de uma Xangai do século XIX. Apesar disso não vemos nenhum resultado aparente das ações discutidas pelos personagens do filme, não vemos relações sexuais nem casamentos; ele parece trabalhar com o “entre” uma coisa ou outra. Utilizando o plano sequência, com a câmera sempre distante, observativa e fluida, acompanhamos o cotidiano desses personagens de forma paradoxalmente fria: ao mesmo tempo que estamos inseridos naquele ambiente de forma realista também observamos tudo à certa distância, sem julgamentos, sem foco central, só um cinema quase beirando a interatividade plena.

Nas imagens acima vemos fragmentos do primeiro plano do filme, com a duração de 8 minutos; acompanhamos uma mesa farta, com diversos personagens, jogando um jogo típico taiwanês, bebendo, fumando e comendo. Com uma encenação que beira à perfeição, a câmera investiga e decupa aquele ambiente fascinante suavemente, semelhante ao olho humano, revelando os diversos personagens que se mantêm sempre em movimento. O quadro de HHH é maior que o enquadramento, ou seja, o que a câmera recorta é menor do que está de fato acontecendo: a encenação dos personagens é independente da câmera, constantemente eles entram e saem do enquadramento, brindam, abrem leques, se servem de comida e bebida, com ações que nunca param e que exploram e adicionam elementos ao que é visto e não visto. Os ruídos, luzes e gestos escorrem pelo fundo e cantos da imagem evocando um extra campo que nos deixa sempre estimulados a acompanhar esse quadro que é vivo e pulsante.

Assim como o ópio, utilizado por todos os personagens, o filme se preocupa em perturbar as zonas sensoriais do espectador. A hipnose anestésica que o ópio provoca se traduz em mise-en-scène narrativa, fazendo o espectador mergulhar em um delírio sonolento e imagético. Em certa cena, após um fade out, a câmera se pousa a filmar ritualmente uma mulher acendendo o ópio, lentamente, com movimentos pausados e uma música inebriante. A beleza da cena está justamente nessa pausa contemplativa, nesse tempo morto em que nada é dito, nessa forma densa de perder os sentidos do tempo e espaço por um momento.

Essa maneira sensorial do filme se torna radical quando acompanhamos por 120 minutos as cenas serem conduzidas quase que da mesma forma. O enclausuramento dos bordéis (não existem cenas externas), a utilização incessante da música (que tem uma pitada contemporânea com sintetizadores) e a maneira impressionista com que ele pinta com a luz permeiam todas as cenas do filme. E assim cria uma forma original de lidar com o tempo e o espaço através da câmera para criar peças cinematográficas estonteantes.

 

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