PRECISAMOS FALAR SOBRE A NEUTRALIDADE DA REDE

PRECISAMOS FALAR SOBRE A NEUTRALIDADE DA REDE

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Por Samuel Aguiar – Poligrafias – Parceiros Contramão HUB

Em um dia cruelmente tedioso, a internet parou de funcionar. Não a Internet inteira, aquela com i maiúsculo, mas a parte dela que reside num daqueles aparelhos pretos que povoam o digníssimo “quartinho”. Num dia normal, de temperatura agradável e silêncio ensurdecedor, as luzinhas verdes do modem piscariam agitadas e alegres, mas acho que o cansaço dominou até o mais feliz dos dispositivos.

O problema é que aqui, no interior, o sinal de telefonia celular só dá as caras quando quer. À medida que a internet perdia potência, os cantores do Spotify pareciam mergulhar mais fundo. O chiado dos mergulhadores continuou até que, sem aguentar o próprio barulho, cessou. Foi mais ou menos nesse momento que decidi, como cientista de computação, resolver o problema.

Admito, sou cheio de promessas. Disse aos meus pais que daria um jeito na situação, mas sinceramente não fazia ideia do que tinha acontecido. Os olhares calmos e atentos foram gradativamente substituídos pelo semblante de desespero depois que, por três ou quatro vezes, reiniciei os apetrechos e ainda assim não vi o maldito dinossauro saltitante desaparecer das nossas telas. Passados uns trinta minutos, cheguei a pensar que nem uma desfibrilação ressuscitaria a minha rede. Com a mão no telefone para acionar a assistência técnica, recebi a iluminação divina: substituir os cabos de rede.

Bom, no final das contas, acho que ser um entusiasta dos computadores salvou meu dia. Busquei a caixa de tecnologias reservas, encontrei tudo que precisava e encarei a árdua tarefa de desembolar, retirar e substituir os cabos que poderiam ter dado defeito. Um minutinho depois e as encantadoras luzes verdes voltaram a dançar felizes naquele quarto inóspito. A questão é que, como escritor e divagador, fiquei impressionado com o tosco caráter físico da situação. É desconcertante imaginar que um ou dois cabos podem me conectar ou desconectar da Internet, a mais poderosa e ágil das redes de informação do planeta.

Confesso que a essência da coisa – essa que alguns cabos fazem funcionar – me escapava. Sempre estive conectado, mas a realidade tangível de todo o processo nunca me passou pela cabeça. As luzes verdes me diziam que a Internet – como conceito abstrato e indiscutível – estava ligada. Estive, desde muito novo, conectado a alguma coisa que eu nunca soube o que era. Na faculdade – ou talvez um pouco antes – tomei conhecimento de que existem diversos datacenters por aí, espalhados em lugares distantes e meio inimagináveis. Dizem que é por lá que se hospedam as informações que acessamos todos os dias, mas eu não sei é bem assim.

Dois bilhões de pessoas usam a tão aclamada Internet diariamente. Imagino que para a grande maior parte delas, o aspecto físico de uma vastidão totalmente sem corpo e sem características definidas não é importante. A grande complicação é que, eu e você, sem entendermos como essa estrutura funciona, nos tornamos incapazes de refletir sobre seus limites. Estranhamente, encontrei um dos limites da minha conexão. Minha internet estava estragada, deixou de ser planeta pra ser uma ilha momentaneamente incomunicável.

A interrupção do meu estado de tédio foi, no mínimo, oportuna. Depois que as músicas voltaram a tocar sem chiados, percebi que, por anos, a Internet foi uma exceção aos meus instintos curiosos. A rede das redes sempre foi uma ideia facilmente aceitável, dessas que vêm junto com as novidades tecnológicas e pouco se importam em divulgar o próprio comportamento. Sempre esteve ali, no computador, no celular, na televisão e em praticamente tudo que tem tela. Havia o mundo virtual e o mundo físico, o ciberespaço e os lugares reais. Nunca pensei na interseção entre eles.

E se a Internet não for um lugar qualquer, invisível e inalcançável, mas algum lugar? Tenho certeza que a Internet não é só um emaranhado de cabos, mas também não é totalmente wireless. A Internet não está em toda parte, não dá acesso a todos e pode não ser tão democrática quanto dizem que é.

Existem tubos que ligam Londres a Nova Iorque. Tubos que ligam o Google ao Facebook. Existem prédios cheios de cabos e existem centenas de milhares de quilômetros de estradas e ferrovias cujas margens contêm tubos enterrados. Tubos dentro dos quais encontramos fibras ópticas. Dentro das fibras, luz. Codificados na luz, estamos nós – cada vez mais perdidos nessa imensidão de dados.

Sinceramente, fico embasbacado com as metáforas que a televisão anda fazendo sobre a rede. Desde 1990, quando a Internet de fato decolou, as placas de “superestrada da informação” foram derrubadas. Faz tempo que pensamos na internet como uma teia de seda em que cada lugar é igualmente acessível aos outros. Imaginamos as nossas conexões como imediatas e completas – a não ser quando não ocorrem. É tão raro não poder chegar a uma parte qualquer da Internet a partir de outra que ela mesma parece não ter parte alguma.

Pensando sobre todo esse “silício que nos cerca”, cheguei à conclusão que a Internet pode até não fazer sentido pra maioria das pessoas, mas há uma pitada conceitual que converge sempre no mesmo sentido. A rede das redes é, no ideário do povo, a ágora digital, é onde todos os usuários se encontram e têm voz, é onde devem florescer os ímpetos democráticos.

Talvez por isso eu tenha ficado extremamente assustado com a notícia de que os Estados Unidos podem abolir a neutralidade da rede. A ideia é tão contrária à lógica em que pensamos nossas conexões – mesmo que sem entendê-las a fundo – que fica difícil imaginar como uma proposta dessas passou pelo primeiro estágio de aprovação. Pior é perceber que a mídia tradicional, com todo aquele desejo de informar e elucidar os fatos, simplesmente ignorou a lógica, os valores e o próprio conceito – socialmente forjado – da Internet.

A proposta de explicação que inundou todos os veículos midiáticos regrediu violentamente no tempo, e insistiu que a Internet é uma superestrada. Não basta explicar que numa rede sem neutralidade os dados podem ter vias prioritárias. Isso é menosprezar a essência de interconectividade e de amplidão e ignorar completamente a mais amedrontadora das possibilidades: a perda de conexões.

Imaginar a Internet como uma teia parece-me muito mais justo e prático, porque evidencia a necessidade óbvia de podermos nos comunicar com qualquer parte da malha. Mais que explicitar que sites e empresas poderiam ter maior velocidade de acesso e transmissão de dados, eu gostaria que a televisão e os jornais deixassem claro que numa rede sem neutralidade, a teia pode e muito provavelmente será cortada. Nós, usuários, poderemos ter que pagar taxas extras para acessar diversos sites – isto é, se eles ainda puderem ser acessados.

Monopólio. Preços Altos. Censura. Alienação. Extermínio dos pequenos produtores de conteúdo. Não há necessidade de explicar os resultados mais que evidentes da possível aceitação de uma proposta como essa.

Faz uns dias que a internet parou de funcionar aqui em casa. Agora, o tédio passou. Ainda não entendi direito o que é essa tal Internet com i maiúsculo, mas fico feliz em poder me conectar a ela com um ou dois cabos. Se você está lendo este texto, provavelmente tá conectado também. É legal podermos nos encontrar, é legal termos voz, é legal acessarmos esse algum lugar. Aqui, estamos em pé de igualdade. Daqui, podemos ir a qualquer outro canto. Isso é neutralidade, isso é o que nós precisamos da Internet.

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