[ T o q u e ]

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Por Bianca Rolff – Gauche – Parceira Contramão HUB

Ele chegou em casa, depois de um dia extremamente cansativo. Passou pelos longos cômodos até chegar ao quarto, cansado e repleto de um orgulho que há muito não sentia.

Trabalhar com música o fazia se sentir vivo. Poucas coisas no mundo eram capazes de mexer com os sentimentos das pessoas como letra & melodia, e ele, agora já crescido e adulto, percebia que havia nascido para aquilo.

O dia tinha sido bom. Gravara duas músicas em estúdio, fechara dois trabalhos para os próximos meses e ainda tivera tempo de passar em um pequeno bar no caminho de casa e prosear com alguns velhos amigos. Agora, contudo, ele só queria deitar e fechar os olhos.

Tirara a camisa, largando-a pelo chão do quarto e se jogara sobre a cama ainda bagunçada. Sentiu o corpo relaxar, os músculos se descontraírem e o cansaço se abater sobre ele.

Estava quase adormecendo quando uma pequena onda de vibrações percorreu a sua coxa. Colocando a mão no bolso da calça, retirou o celular e viu que havia uma série de mensagens. Sem muita paciência, percorreu os olhos por elas, absorvendo vagamente o conteúdo. Havia muitas mensagens de admiradores do seu trabalho, pessoas querendo parcerias e mais algumas elogiando algum de seus vídeos veiculados na internet. Outras tantas eram de outro teor. Ele vinha aprendendo que a ascensão como um dos músicos mais promissores da atualidade trazia consigo um assédio muito grande, e muitas das vezes de jovens extremamente bonitas, dentro daquilo que ele considerava ser o seu “padrão”. Ele geralmente respondia, dava certa atenção, afinal, não havia justificativas para que não fosse gentil e educado. Suas redes sociais cada vez mais vinham se abarrotando de elogios, mensagens de duplo sentido, convites inesperados, às vezes fotos muito reveladoras. Ele lidava com aquilo da melhor forma possível, cuidando para que soubesse discernir entre sinceridade e mero interesse pelo que se poderia conseguir com a sua fama. Entretanto, a sua empolgação com esse tipo de mensagem era passageira.

Ele fechou os olhos. A única imagem que via era dela. Ela. E ele tinha ferrado com tudo.

Nunca se imaginou apaixonado, perdido em pensamentos e planos para o futuro, mas em menos de dois meses, era exatamente assim que ele estava. O peito pulando com a ansiedade a cada vez que pensava em encontrar com ela, em lhe fazer uma surpresa ao final do dia, em imaginar que ela estaria na plateia no próximo show. Ele se apaixonara à primeira vista de seu sorriso, e jamais se imaginou tão leve e completo. Ela era pura energia, contagiante em sua alegria, seus cabelos que reluziam ao menor sinal da lua e o coração mais repleto de amor que ele já tivera a chance de conhecer.

Mas ele estragou tudo. Com o tempo, ele se afastou. Mergulhou tão profundamente no trabalho que não mais a via. Se ela mandava mensagens, respondia de maneira seca, sem aquela profusão de palavras que tanto a encantaram. Ele se lembrava de quando a presenteara com uma música improvisada ao final da noite, depois de pegá-la na faculdade e a levar para o mirante mais bonito da cidade. Ele dedilhara no violão uma canção de pouco mais de um minuto, e quando olhou para ela, viu o choro mais lindo de toda a sua vida. Foi naquele momento que ela se abrira para ele, fazendo-o perceber que por mais radiante que ela fosse, ela não estava acostumada com o amor.

E ele, aos poucos, fugira. Hoje percebia tudo com clareza. Aquela luz pela qual ele se apaixonara perdidamente nela foi aos poucos se tornando opaca, tremeluzente. Com o seu próprio afastamento e consequente fechamento, conseguia traçar cada um dos sintomas refletidos nela. As palavras de amor ditas pela sua doce voz se tornaram pequenas e receosas, quase como se ela lhe pedisse desculpas cada vez que as pronunciava. Os encontros duravam cada vez menos e ela, que nunca reclamava de nada, apenas saía, e ele agora entendia que o avermelhar de suas faces não eram blush. Os shows em que ela fazia questão de prestigiar, sentada sempre aos fundos do ambiente, deixando que as fãs nem soubessem de sua existência, aos poucos foram se tornando esporádicos… até que ela não mais estava lá. Ela não estava mais lá, pois não suportara amar sozinha.

Ele lhe ofertara o mundo e a deixara viver nele sem a sua companhia. A verdade é que ele fugira para as suas próprias músicas sem perceber a tempo que a melodia mais importante não vinha de seus dedos, mas do pulsar do peito.

Abriu os olhos, sentindo o rosto quente e molhado. O mesmo avermelhar da face que ele agora sabia que ela provavelmente sentia todas as noites em que ele se fizera partir. Partir… Esse verbo que obrigatoriamente possuía dois gumes. Ele, fugindo daquilo que mais ansiava, partira, e ela se partiu em pedaços.

O telefone vibrou novamente e ele abriu a caixa de mensagens só para ver mais elogios, tentações e possibilidades. Apertou o botão de desligar, colocou o aparelho em cima da cômoda e pegou o violão.

Fonte: Pinterest

Na noite em que a levara ao mirante, ele tinha dito a ela que guardasse aqueles minutinhos de improviso na memória, porque ele não se lembraria da música após algumas cervejas e cigarros. Tinha dito aquilo apenas para descontraí-la, deixá-la mais à vontade e vê-la sorrir aquele sorriso que revirava tudo do avesso. Quando chegara em casa naquela noite, contudo, terminara de compor a canção, mas nunca lhe dissera nada. Talvez a sua autossabotagem já despontasse ali.

Dedilhou-a toda no violão, sem se importar com a hora e o possível incômodo dos vizinhos. Uma das músicas que gravara em estúdio mais cedo era justamente essa. Em alguns dias a estrearia ao vivo, de forma inédita antes de divulgá-la na internet. Dissera aos seus produtores que era para causar mais impacto, mas no fundo de seu tão apertado peito sabia que fazia aquilo na esperança de olhar para um único par de olhos no fundo do salão e ter a chance de recomeçar.

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