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ked maria

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Por Auspicioso Acapela – Coletivo Parceiro Contramão HUB

Durante alguma conversa com amigos sempre sai “já fiquei com fulano” e a frase é rebatida com “mas você já pegou todo mundo também, né?”, o que acho triste é que ninguém nunca parou para me perguntar o porquê de ter tido tantos relacionamentos ou ficantes. 

O peso de não se encaixar no padrão de beleza estabelecido, na fase da infância, vem de forma bruta e rasteira. Nos primeiros dias na escola você já sabe qual posição irá ocupar, tem a menina feia, a indiferente e a bonita. Eu era uma criança negra, orelhuda e songa, obviamente não era a “bonita”. Apesar de todo o desconforto que não entendia muito bem, encarava como só mais uma coisa estranha da vida que eu não fazia a mínima ideia do porquê. 

Quando cheguei no Ensino Fundamental existia uma pressão quase palpável para “namorar”, a questão afetiva era um status e, assim como mandam os filmes hollywoodianos, “o menino bonito fica com a menina bonita, sempre”. Ninguém quer “namorar” com a pretinha da sala, passar o recreio de mãos dadas ou algo do gênero. Então os meus amigos eram os rejeitados, a menina gorda, os negros, o cabeçudo, a que usava óculos, enfim, éramos o Clube dos Excluídos. Logo, tudo isso significava que a probabilidade de ter algum privilégio com a minha beleza foi reduzida a zero. 

Uma vez ou outra aparecia algum menino interessado, o que me fazia pular de alegria até descobrir que ele estava ali por cola, para copiar trabalhos, pegar resumo, na verdade ele só queria aproveitar. Nesses casos me sentia mal, mas não tanto quando percebi a lógica do sistema, para conseguir confiança e jeito para chegar na “menina bonita” exige treino e prática, e não existe pessoa melhor do que aquela que não está em evidência. Os garotos se aproximavam de mim por ser a “menos pior” do Clube dos Excluídos, afinal não era gorda, minha pele é de um tom mais claro comparado as outras negras, apesar do meu cabelo ser “ruim”, era escovava toda semana. Por muitas vezes preferi ser só a “inteligente” do que ser a “menos pior”. No entanto, pegava as migalhas que eram jogadas e tentava me contentar, pelo menos tinha perdido o BV¹, e é aos poucos que se conquista algo. 

O tempo passou e no Ensino Médio consegui ver como essa coisa de se doar para pessoas esporádicas que aparecem de repente na vida só gera mais solidão.  Sempre sonhei com a auto-suficiência e admitir que me sentia só era o mesmo que anunciar a minha fraqueza, coisa que não suportaria. Colecionar vários beijos na boca impulsionou um vazio que não iria compartilhar com ninguém, principalmente porque minhas amigas me viam como uma soldada que invadiu o campo inimigo e abriria uma entrada para elas também. Pensava em como dizer que o lado de lá é superficial e oco, contudo todos que beijavam eram felizes, o problema poderia está comigo. 

Com os anos aderi a Técnica do Desinteresse, ninguém poderia me rejeitar por uma coisa que eu não estava afim, o que era muito cômodo, afinal se não desejasse o “crush” da sala ele nunca poderia me menosprezar. Em contrapartida, aceitava todos os pedidos de afeto, em outras palavras, não procurava carinho porém era de quem quisesse. Acredito que veio daqui o fato de hoje não me atrair por indivíduos olimpianos, prefiro aproximar dos fora dos padrões de beleza estabelecidos. 

Tudo isso gerou uma falta de reconhecimento muito grande, todo garoto que demonstrava interesse ativava uma vozinha na minha cabeça que sussurrava “finalmente um”. Fazia planos para o futuro com aquela estúpida esperança do “agora vai” e nunca ia. Toda expectativa de um parceiro era encarada como uma cura da minha solitude, atraindo relacionamentos e amizades abusivas. Mantevi vários namoros por pensar que não seria o suficiente para outra pessoa, e quando eles terminavam, recomeçava a procura de outros lábios para tentar alcançar aquilo que me venderam como o necessário para ser feliz. O resultado de tudo isso foram várias traições e abandonos. 

As coisas pioraram quando perdi a minha virgindade, pois a energia que é trocada no sexo é muito maior. Tola como sou me entregava aos meus parceiros na tentativa de estabelecer conexão, intimidade e companheirismo que, em muitas vezes, não era recíproco. Acabava me sentindo uma bosta por ter me dedicado tanto por alguém que só que ter uma rapidinha. 

Olho para trás e vejo quantas pessoas já passaram na minha vida, obviamente levo um pouco delas comigo e nem tudo foi ruim. Tenho ótimas lembranças e sons de risadas alojadas em lugares especiais, para lembrar sempre não preciso de encaixe nenhum. Sou rodada por buscar status. Sou rodada por me sentir sozinha. Sou rodada por procurar amor. Sou rodada na tentativa inútil de me completar. Não consigo dizer exatamente o que quero, mas com certeza digo com todas as palavras o que não quero. Uso todas essas experiência como voz para gritar a minha completude. 

Hoje, aos vinte e dois anos, não dou importância para beleza e apesar de já não ser considerada a “menos pior” a palavra “gostosa” chega um pouco deturpada aos meus ouvidos. Almejei tanto ocupar o lugar de desejo que agora não consigo gostar dessa posição, quando me é dada. Estou em um relacionamento fechado que está longe da ‘perfeição’ (não quero a ideia de “perfeição” que tentam me vender), com alguém que me respeita e me ama. Tenho maturidade para conversar e me expor para meu namorado e liberdade para me expressar. 

Todas as vezes que alguém comenta como sou rodada, as memórias de todas essas rejeições e as situações submetida, que não fazem jus ao que sou, vêm a mente com um toque de tristeza. Com tanto discurso de empatia me pergunto se ela foi mais um dos privilégios que me foi negado.

¹Boca Virgem – alguém que nunca beijou na boca

Texto escrito: Ked Maria/ Texto Editado: Werterley  Cruz