Por Ana Clara Souza

A minha relação com o meu corpo físico sempre foi muitas coisas. É difícil resumir 24 anos de uma relação tóxica em uma só palavra além de ‘tóxica’, mas, é tudo, menos confortável. 

Sempre ouvi dizer que temos que sair do conforto e experimentar coisas novas. Neste caso, o incansável desconforto poderia dar uma trégua, afinal, a calmaria cairia muito bem em nossa relação. 

É Carnaval. A Prefeitura de Belo Horizonte anunciou o melhor e maior de todos os Carnavais. Os jornais e sites de entretenimento lotam as páginas digitais e físicas de  inúmeras matérias, notícias, dicas e reportagens sobre como aproveitar a festa, que é a cara do Brasil, da melhor forma. Depois de dois anos reclusa pela pandemia da COVID-19, eu e meu corpo não nos preparamos para estar na melhor forma para carnavalizar, mas nós iríamos todos os dias. Estávamos muitíssimos animados. Só não imaginávamos que uma parte de nós não éramos a favor de passar cinco dias na folia, minhas coxas. 

Vou chamá-las de ‘Furibundas’ – que é sinônimo de irritadas, e é um nome bem cômico, como nosso vínculo. 

Desde sempre, elas foram alvos de comentários e censuras. Acredito eu que elas queriam ser assim, normais do jeitinho que são, mas com o passar dos anos e os padrões que a mídia impõe, as Furibundas foram se sentindo diferentes do comum, mesmo sendo comum ter corpos diferentes. 

Elas não são muito fortes visualmente falando, mas acho que elas sustentam muitas coisas. Primeiro, elas abrigam o maior osso humano, o fêmur, e aguentam muitas críticas. As minhas, no caso, sempre foram muito criticadas.

Elas são grossas, lotadas de celulites, estrias e gostosuras. Há quem diga que elas são lindas e fartas, outros, que elas são exageradas, há quem deseja a ponto de tocá-las, há quem goste, há quem não goste… o fato é que, mesmo envergonhadas, elas iriam aparecer em todos os dias de carnaval. 

É 4h30 da manhã e elas se despertam de um sono de três horas. Mesmo exaustas, elas teriam que cumprir com o combinado de se esbaldar no famoso bloco belorizontino, ‘Então Brilha’. Só que nada brilhou. Inventei de decorá-las com uma fatídica meia-arrastão, o que não foi uma boa ideia, mas estava a caráter. Saímos.

Eram 6h da manhã e, até agora, eu e as furibundas se locomoviam de carro. Às 6h15, minhas coxas e as das minhas amigas resolvem começar o trajeto de mais ou menos dois quilômetros até o bloco, a pé. Não tinha dado nem 10min e comecei a perceber que a meia-arrastão não tinha sido uma boa ideia para o primeiro dia. Estressadas, as furibundas me pedem cuidado, como se fosse um cigarro para acalmar, e então, resolvi andar um pouco mais devagar. Fiquei dosando o que era confortável para as nervosinhas e tentei não ficar para trás, pois as coxas magras das minhas amigas estavam apressadas. 

Dá 12h, e as furibundas estão em um estado de estresse que fazia tempos que não presenciava. Escuras e vermelhas, lotadas de calombinhos pelo atrito e umas bolinhas como se fosse uma espinhazinha que incomoda, agora, elas pediam não só um cigarro, mas um maço. Eu ignorei. Como havia passado um grande período em casa, eu posterguei o ato que elas poderiam se irritar. Também esqueci que eram rancorosas. 

Peguei um bocado de hidratante de pele, afastei a meia e como tentativa de conciliação, “lambrequei” as coxas de hidratante. Ufa, elas fumaram e se acalmaram por cinco minutos! Se expressassem com palavras, eu imaginaria que estavam me xingando com todos os tipos de palavras ofensivas do mundo. Eram idênticas às viciadas em drogas. Passava mais hidratante e mesmo parada elas berravam com muito rancor por mais e mais.

Passei o resto do dia andando devagar e reclamando. Acho que aquele ditado “me diga com quem tu andas que direi quem tu és”, se fez jus. Eu estava estressada e sedenta para ir embora, assim como as coxas estavam por uma pomada de assadura.

No outro dia, eu não estava disposta a desistir do Carnaval de belô pelas minhas coxas. Super “compreendia”, acreditando que elas entenderiam que era apenas uma fase e que logo iria passar. Já que estavam estressadas, ardidas e com escoriações, o que seria mais quatro dias de Carnaval?

Elas não foram compreensivas. No terceiro dia eu cogitei o ato de não comparecer em nenhum bloquinho do quarto, tudo por conta das rancorosas furibundas.

Não tinha muito o que fazer. Eu, mais uma vez, teria de ser tóxica com elas. E fui. Já se passaram nove meses desde o Carnaval e eu continuo sendo. Imagine uma pessoa muito chata. Imagine ela te irritando. Agora, tente imaginar o porquê dela ser assim. 

Pode parecer sem sentido, mas nessa altura do campeonato você já deve perceber que somos moldados de acordo com os acontecimentos da vida. Quando proponho você a usar imaginação para ter empatia com o outro, é na tentativa de aproximar o que senti e o porquê eu mudei os meus pensamentos em relação às furibundas.

Elas nunca tiveram paz. Sempre foram alvo de sofrimento. Já se cobriram de calças extremamente apertadas, constantemente sofrem por atritos… E eu nunca parei de abusar da boa vontade delas. Hoje, entendo a irritação delas no Carnaval. 

Outro dia, resolvi sair da aula de dança e andar até minha casa com um short totalmente desconfortável para as furibundas, não bastava para mim a ocorrência de 3h usando-as de forma ferrenha, queria abusar. Resultado: tivemos uma briga. Dessa vez, a briga foi tão feia, que nem quando quis cuidar delas, tive retorno. Elas ardiam por tudo. Como ser graciosa assim?

Entendi que tinha sido rude. Na tentativa de ser mais compreensiva, estou tentando ser empática com elas. Até comprei um hidratante específico, agora, elas estão mansinhas.

Continuando, lá no Carnaval, no quinto e último dia, elas já nem tentavam dialogar comigo. Parecia que tinham entendido que estavam destinadas a sofrer. A questão nem era mais a comparação com outras coxas, elas queriam, apenas, aproveitar sem sofrimento. 

Infelizmente, não foi possível. Consternadas, coxas grandes parecem não poder ter divertimento e estilo sem dor. Mesmo na tentativa de confortá-las no último dia, a situação estava drástica. Com shorts maiores ou com shorts curtos, elas iriam mostrar que não estavam felizes com a situação que as coloquei. 

É legitimamente possível que em pleno século XXI, em 2023, não existam soluções válidas para acabar com a irritação das furibundas? Reduzir as coxas é a única alternativa?

O verbo reduzir é doloroso. Se reduzo as furibundas, tenho a impressão que sintetizo toda uma estrutura dos meus ancestrais, negros e latinos, que contam em seus corpos que somos lindos assim, com coxas fartas e fortes. Mas esse é o ponto. Não existem possibilidades para furibundas grossas, pois o capitalismo criou um mecanismo seletivo onde não quer que elas sejam aceitas, nem no carnaval e nem em outras épocas do ano. Isso reverbera de tantas formas dentro de mim que desconto nelas, minhas coxas. Elas são furibundas não é à toa, e eu compreendi.

Seguimos tendo uma relação desconfortável.

Já é Carnaval, cidade!

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