Bergman: Do cinema ao teatro

Bergman: Do cinema ao teatro

A Fundação Clóvis Salgado apresentou durante 46 dias a Mostra Igmar Bergman – Instante e Eternidade. Segundo o curador do Cine Humberto Mauro, Rafael Ciccarini, “uma mostra desse tipo e dessa proporção não se limita a apenas exibir toda a filmografia, mas também de vivenciar esse cineasta por um longo período de tempo, tentando discutir os diferentes aspectos desse autor.” Na programação, 79 filmes distribuídos em 160 sessões foram exibidos, reunindo diversos formatos, como o digital, a tecnologia DCP (Digital Cinema Package) e a película de 35mm, que totalizaram 800 kg de filme vindos do exterior.

Além dos filmes, a programação apresentou cursos, debates, palestras e a realização da peça teatral baseada no último filme de Bergman – Saraband. Os diretores Ricardo Alves Jr. e Grace Passô foram os convidados para transformar a ideia em realidade. O espetáculo Sarabanda foi apresentado no Grande Teatro do Palácio das Artes e teve apresentações impactantes. Bergman, em sua vida, colocou o teatro como sua esposa e o cinema como sua amante e a mostra trouxe essa referência. O cinema trazendo a eternidade e o teatro o instante, compondo o nome da Mostra.

Ricardo Alves Jr e Grace Passô: O DESAFIO TEATRAL DE SARABANDA

Ricardo Alves Jr., formou-se pela Universidad del Cine, em Buenos Aires. Como curador, integrou comitês de seleção dos Festivais Internacionais de Curtas do Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Diretora, dramaturga e atriz, Grasse Passô formou-se no Centro de Formação Artística da Fundação Clóvis Salgado, em Belo Horizonte. Grace e Ricardo foram convidados pela curadoria da Mostra Ingmar Bergman – Instante e Eternidade para adaptar o último filme da obra de Bergman, Saraband.

Como surgiu a ideia da adaptação do Bergman para o teatro?

Ricardo – A montagem do Sarabanda veio a partir do convite da curadoria da Mostra. Vendo que o Bergman foi um grande realizador do cinema e também se dedicou muito ao teatro pensamos numa montagem dentro da mostra de algum filme para levar ao teatro.

Grace – Eu acho que pra relevar a dimensão do teatro na vida do Bergman, a mostra foi ousada em radicalizar nesse formato. Homenagear esse homem do teatro que o Bergman foi, que por vezes a gente até se esquece disso. Para a adaptação, a gente partiu da noção do filme como um texto, mergulhamos nesse filme, não só no roteiro escrito por ele, mas tudo que em seu conjunto Bergman significa. Desse mergulho gerou uma obra teatral que é o “Sarabanda”.

Ricardo – Esse filme particular é o ultimo filme do Bergman, então isso pra gente era algo que significava muito. Na relação desses 4 personagens, está ali contido tudo que o Bergman trabalhou em todas as suas filmografias, as relações entre pai e filho, a relação com o outro, e tem alguns que falam muito sobre a morte que atravessa toda essa dramaturgia do espetáculo e do filme, então assim, esse filme “Saraband” foi muito significativo para trazer ao teatro.

Como foi receber o convite da curadoria e fazer o convite para a Grace? Grace como foi receber esse convite do Ricardo?

Ricardo – O curador da Mostra, Rafael Ciccarini, trouxe esse desejo de realmente pensar o Bergman dentro do teatro e ainda não tinha essa clareza do que seria esse espetáculo no grande teatro, o que seria o último filme do Bergman. Ele trouxe uma proposta em como a gente poderia pensar em trazer esse Bergman para dentro do teatro. Daí não sei, como a gente já tinha trabalhado juntos no ano passado, na hora que eu recebi o convite, por telefone mesmo, fiz o convite para a Grace, que nem tava aqui em BH, e falei com ela: “surgiu esse convite, vamos pensar algo assim?”

Grace – As pessoas assistindo ou entrevistando gostam um pouco de separar, por exemplo, então o Ricardo cuidou da visão de cinema e você do teatro, é muito mais complexo que isso. É óbvio que existe um campo técnico que o Ricardo sabe que eu não sei, ele trabalha com o cinema eu não e nós dois trabalhamos com teatro. então a questão é bem mais complexa. Na verdade eu já conheço o Ricardo há muito tempo e a gente já é parceiro. Quando eu faço uma performace, é muito comum eu ligar pra ele e perguntar sobre. Ele é uma referencia de trabalho, em todos os trabalhos. Então, um convite do Ricardo é muito caseiro, pelo fato de a gente ter uma intimidade, pensamos em arte junto de alguma forma, fazemos parte de uma mesma geração e, é um ponto de referência na minha vida artística. Se eu me perco ou me encontro, eu ligo pra ele e pergunto. Como esse diálogo já existe há muito tempo,o convite soou natural, pela intimidade e admiração que temos um pelo outro.

Ricardo – Com esse convite já que minha relação primeiramente com o cinema, mesmo já tendo trabalhado com teatro, esse trabalho não faria sozinho.Então a primeira pessoa que eu pensei foi na Grace. Quando o Cicarini fez a proposta, era pra gente poder fazer esse encontro e trabalhar junto.

Bergman inovou muito em termos de linguagem, a peça também traz uma inovação como por exemplo colocar a plateia em cima do palco. O que isso influenciou nessa adaptação para o teatro?

Grace – Nesse caldeirão de questões e objetivos da peça, partindo desse filme, existe um desejo de homenagem e o significado do teatro na vida do Bergman, então de alguma forma, a gente entendendo esse espaço arquitetônico como um lugar muito simbólico do teatro, inclusive da cidade Belo Horizonte. Esse palco é muito significativo e representativo de um teatro em grande escala, então trabalhando nesse espaço, jogando a luz nele próprio, a gente entendeu que assim estaria metalinguisticamente falando sobre essa questão do teatro, nessa linguagem teatral na vida Bergman, daí esse cenário e arquitetura da peça, essa inversão da platéia é consequência disso. Se a gente queria jogar a luz nesse espaço, mudamos o ângulo convencional do espectador, trazemos eles para conseguirem se ver aqui de alguma forma, um espelho contrário.

Ricardo – Trazer a plateia para esse ponto de vista, é trazer para uma proximidade da cena. Cria-se também um espaço bem intimista em determinados momentos para a construção da cena, que é também muito próprio do Bergman. Trabalhar sempre os interiores, sempre os personagens em espaços menores. Tem algo interessante dessa inversão que é o momento de ver esse palco, de ver esse grande teatro sobre um outro ponto de vista, acho que todo mundo que é de BH sabe a importância desse teatro, então é uma forma de homenagiar não só o Bergman mas também esse grande espaço teatral.

Como foi fazer a ligação entre audiovisual e teatro? Como foi trazer isso para a peça?

Ricardo – Foi muito fluido, a gente começou a conversar, colocar ideias e fomos trazendo coisas e trabalhando isso dentro do ensaio com os atores. A gente tinha um desejo de trabalhar com o audiovisual, trabalhar com a imagem projetada dentro do espetáculo e, fomos descobrindo isso no processo com os atores. trouxe a câmera e pensamos em como colocar o personagem fora cena, mas sendo projetado dentro dela, isso foi uma coisa que a gente foi discutindo muito assim como na encenação. Por exemplo, saber como iria trabalhar com certa profundidade de campo e um tipo de registro de voz que seria microfonado, que é muito próprio do cinema, um som ou uma fala em primeiro plano em certa distância e as projeções nós fomos colocando isso como uma ideia e durante o processo e meio que entendendo essas funções.

Encontraram alguma dificuldade na adaptação da pela e/ou na preparação com os atores?

Grace – Se eu fosse eleger uma coisa pra falar sobre isso, não falaria dificuldade, mas existiu sempre uma preocupação nossa em entender de fato. Quando a gente propõe fazer uma peça de teatro a partir de um filme, o que muda radicalmente? Obviamente não vamos fazer uma cópia de um filme, não faz sentido, mas fazer uma recriação em outra linguagem artística que vai nos fazer criar coisas que jamais poderíamos fazer no cinema. A nossa preocupação sempre foi entender lucidamente qual a função de fato, de transformar numa obra teatral com força própria e com autonomia em relação a um filme tão importante.

No filme o “7º selo” de Bergman ele levanta questões sobre morte, inferno e deus que também está presente no seu filme “Tremor”, existe alguma relação entre os dois?

Ricardo – Não diria relação, mas tem algo, um encontro com a morte. Não sei se faria alguma relação entre um filme e outro, mas o Bergman tem alguma coisa que influencia, todo mundo que assisti um filme dele, seja o “7º Selo”, seja “Gritos e Sussurros”, se impacta muito com a forma de como ele coloca os personagens e as questões existenciais. Tem algo aí que eu também me deparo.

Nas suas peças a gente também percebe que você levanta questões existenciais. Existe alguma relação com as obras de Bergman?

Grace – intencional não, acho que um pouco por ai, como o Ricardo falou. Tem algumas pessoas que criam coisas tão poderosas, inauguram novos códigos em determinada linguagem, que são uma influencia tão potente e viva na arte que é impossível não ter se modificado. Ter artistas que modificam o tempo e, o Bergman é mais um desses, que é impossível não fazer parte de seu repertório pessoal como artista, não tem como não ser afetado ou ser marcante, então o trabalho do Bergman é muito marcante na minha vida.

Rafael Ciccarini

Como está a mostra do Bergman? Vem superando as expectativas?

A mostra está sendo um sucesso, as expectativas já eram boas, mas estão sendo superadas. É interessante comentar que essa é uma política de longo prazo. A gente começou na Fundação Clovis Salgado desde a Mostra Luis Buñuel que é uma mostra que foi muito especial, a primeira grande mostra que exibiu toda a filmografia dele e se realizou também atividades de de formação, debates, palestras, cursos. Porque uma mostra desse tipo, dessa proporção não se limita a apenas exibir os filmes, o que ja seria uma coisa legal, exibir uma obra completa de um cineasta importante, mas também de vivenciar esse cineasta por um longo período de tempo e tentando discutir os diferentes aspectos desse autor. Isso já fizemos com o Luis Buñuel, Charlin Chaplin e Hitchcock. Essa política recebeu uma acolhida da cidade muito grande, com sessões lotadas e recorde de público. Ao mesmo tempo a gente ta lidando com o Bergman que é um autor, que aparentemente não vai dar um público tão grande quanto do Hitchcock que foi o maior sucesso de público e que é uma marca, um nome fortíssimo na história do cinema. Mas surpreendentemente o público está parecido com o do Hitchcock, muitas sessões lotadas e isso é muito legal.

Duas coisas, primeiro porque a gente perde um pouco o preconceito de que o público não estaria interessado em uma programação mais artística e de uma qualidade maior. Existe essa noção, que é um pouco até preconceituosa, que não teria público para certas atividades artísticas e isso é desconstruído quando a gente tem essa experiência.

O que é um desafio para uma mostra do Bergman?
A gente sempre tenta atacar, dialogar, fazer e aparecer todo o universo temático e artístico do autor que a gente está tratando. No caso do Bergman a gente se viu no desafio de exibir mais de 70 filmes, 79 considerando os filmes que ele fez roteiro e os documentários sobre ele e, considerando também que a gente sempre opta por tentar trazer a película, o 35mm,o filme físico e isso significa 800 kg de filme, quase uma tonelada de filmes vindos do exterior, uma série de burocracias, um trabalho de produção muito grande. O Bergman além dessa produção de filmes gigantesca, ele tem uma vida no teatro, tem uma frase famosa que ele fala assim: “Vamos colocar que o teatro é minha esposa e o cinema é minha amante”. Frase interessante que mostra essa relação simbiótica , difícil dizer o que foi mais imoprtante na vida dele . A gente conhece muito mais o Bergman diretor de cinema porque o cinema tem essa coisa da eternização, isso é importante porque está no nome da mostra, isso é um jogo bergmaniano.
O teatro é a arte do efêmero, ele é aquela potencia do público com a presença do ator. Enquanto o cinema trabalha produzindo a eternidade, e isso fica mais complexo ainda em Bergman, porque essa relação de instante e eternidade está presente na produção cinematográfica dele.Um dos grandes temas da arte do Bergman é a morte, a arte pra ele é dura, é dolorosa, mas ele precisa da arte para se manter vivo, até porque a arte por si só é uma luta contra o tempo.

Como lidar com esse bergman deatral, como trazer pra mostra essa esposa do bergman?
Tinhamos duas estratégias. 1 – trazer pra mostra as peças que ele filmou, não é a mesma coisa de estar lá, mas é o que foi possível; 2 – é essa peça “Sarabanda’ tentando reproduzir essa simbiose, reproduzir esse diálogo, invertendo um pouco o signo mais clássico de transposição, é mais fácil fazer um filme através de uma peça. Agora o desafio é pegar um filme e fazer o inverso. Esse desafio profundo de trazer o teatro para a discussão, pensei no nome do Ricardo. Preciso de um artista/diretor que ande pelas duas áreas (cinema e teatro) e que realize um pouco essa simbiose. O projeto começa a nascer, ele traz o nome da Grace que trabalha com o teatro e ele tem um nome no cinema importante.

O que achou da peça “Sarabanda”?
Eu fiquei impactato, não esperava, vi os ensaios e estando ligado a produção, pensei que seria uma peça que toda hora podia dar errado. Na abertura, a peça me convocou pra ela e, a mágica da arte aconteceu, achei a peça forte, me emocionei e os diretores foram fundo no que a gente estava buscando. Essa força veio toda para o palco.Trazer para a peça o audiovisual, tentando construir um pouco o cinema dentro do teatro, ou, repotencializando o teatro com o audiovisual, criando esse filho híbrido ai, que é tão a cara do Bergman.

Texto: Lívia Tostes

Foto Layla Braz

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