Corpo e arte transmutados

Corpo e arte transmutados

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A atriz e dramaturga escocesa Jo Clifford retorna apresenta em Belo Horizonte o espetáculo Eve

A dramaturga e atriz escocesa Jo Clifford retorna a Belo Horizonte com espetáculo “Eve”, que faz referências a sua transição de gênero; espetáculo integra a programação do FIT-BH

Por Patrick Ferreira*

“Meu trabalho como atriz só é possível por causa da minha transição”, sentencia Jo Clifford. A também dramaturga escocesa retorna a Belo Horizonte para, mais um vez, apresentar-se dentro da programação do Festival Internacional de Teatro Palco e Rua, que chega a sua 14ª edição. Em 2016, a artista, de passagem pela capital mineira, encenou o polêmico “Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu”. Desta vez, ela traz ao FIT-BH seu novo espetáculo, “Eve”, que será apresentado nos dias 20 e 21, no teatro Marília.

Na ocasião de sua primeira passagem pelo Brasil, Jo percebeu resistência por parte da sociedade que se mostrou contrária ao monólogo “Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu”. Segmentos religiosos protestaram, em São Paulo, contra o espetáculo, que trazia a figura de Jesus vivendo como uma pessoa trans.

“A incrível hostilidade, violência e censura que esta peça sofreu no Brasil me faz muito consciente das dificuldades que enfrentamos em seu país. Isso torna ainda mais importante que eu faça tudo o que puder para promover a justiça e os direitos humanos para as pessoas trans, aqui e em toda parte”, insiste.

Jo Clifford desembarca em Belo Horizonte com a mesma motivação da primeira vez e traz consigo a montagem “Eve”, que propõe uma reflexão sobre as experiências pelas quais pessoas trans passam na sociedade. O texto do espetáculo em alguns momentos se confunde com momentos e situações vividas pela atriz e dramaturga.

“Há alguns anos, pediram que eu desse uma palestra para um grupo de estudantes de psicologia sobre como é ser transexual. Combinei a palestra com fotos da minha infância e mais tarde, no mesmo ano, dei a mesma palestra para uma companhia de teatro em São Paulo como parte de sua pesquisa sobre uma peça que eles estavam fazendo sobre ser trans. Ambos os grupos foram muito positivos sobre o que eu disse, e me ocorreu que é muito importante que as pessoas entendam de uma maneira humana e sejam capazes a ter empatia com a experiência de uma pessoa trans. Que isso seria uma ferramenta poderosa para acabar com o preconceito. E minha filha, Katie, tem me dito há anos: ‘Papai, você realmente deveria escrever sua autobiografia. E assim, eu tenho’, relata Jo Clifford.

Amadurecimento

Para a dramaturga, a verve artística amadureceu muito depois de sua transição. A insatisfação consigo e posteriormente a mudança de gênero se refletiu no processo da Jo Clifforfd enquanto artista. “Quando vivi como homem, simplesmente não conseguia agir. Eu estava muito envergonhada e muito tímida”, conta.

No espetáculo Eve, Jo Clifforf resgata a história de como o trauma que experimentou quando menino, ao descobrir que seria mais feliz vivendo como uma garota, em uma atmosfera totalmente repressiva, em que cresceu, estava ligado a interpretar papéis de garotas no palco.

“O teatro ficou ligado ao trauma e, embora fosse claramente minha vocação, não consegui encontrar minha voz como dramaturgo até os 35 anos, 20 anos depois daquela experiência e, depois de muitos anos, simplesmente acreditei que nunca agiria. Só nos meus cinquenta anos, quando me tornei totalmente comprometida em viver como mulher, comecei a acreditar que talvez pudesse também agir. E é só agora, nos meus sessenta anos, quando estou muito confortável com a minha identidade feminina que me sinto totalmente confiante como performer. Eu amo isso. Foi minha vocação o tempo todo. Mas como eu digo na peça, levei 50 anos para chegar aqui”, relembra.

Desafios

Em sua carreira teve que lidar com alguns desafios. Talvez, o mais difícil apresentado a ela tenha sido o consevadorismo. Por um tempo, teve o receio de que fosse censurada e teve que lidar com a dificuldade em encotrar profissionais para encenar. Por conta dos obstáculos encontrados, tomou a decisão de produzir e atuar os próprios espetáculos.

“A principal resistência, por muitos anos, estava em mim mesma. Houve manifestações ferozes contra o meu ‘Evangelho Segundo, Jesus Rainha do Céu’ quando eu fiz a primeira peça em Glasgow, em 2009. As pessoas estavam com muito medo de permitir que eu me apresentasse em seus locais por alguns anos depois disso. Ainda enfrento discriminação como atriz trans, e a única maneira de conseguir personagens decentes é escrevê-las eu mesmo”, confessa.

O palco como lugar de resistência

As relações humanas, para Jo Clifford, estão cada vez mais impessoais e mercantilizadas, o que faz com que o momento nas salas de teatro sejam ambientes de compartilhamento de ideias semelhantes. Estar no palco é algo muito intenso para a dramaturga. No FIT-BH, em 2016, ela chegou ao ponto de desmaiar na sua segunda apresentação.

“Eu amei sua cidade. As pessoas são tão acolhedoras e gentis. Infelizmente minha saúde não foi tão boa e eu desmaiei no palco. Mas a bondade que recebi foi esmagadora. Estou muito feliz em voltar e fazer parte do festival novamente”, afirma a atriz.

Em relação às expectavivas para a apresentação de “Eve”, no FIT-BH, Jo Clifford se mostra entusiasmada. Ela segue acreditando na força do teatro como algo capaz de transformar o público. “Estou incrivelmente orgulhosa por estar retornando nesta produção que é apoiada e criada pelo National Theatre of Scotland. Isso, por si só, envia uma mensagem poderosa. As pessoas trans ainda enfrentam grandes problemas em meu país e precisamos continuar trabalhando para melhorar as coisas”, conclui.

SERVIÇO:

Eve (da atriz e dramaturga Jo Clifford)
Local: Teatro Marília
Endereço: Av. Professor Alfredo Balena, 586, Santa Efigênia
Data e horário: 20/09 às 19h e 21/09 às 21h

A programação completa do Festival Internacional de Teatro Palco e Rua você encontra no endereço: fitbh.com.br

*(O estagiário escreveu a reportagem sob supervisão do jornalista Felipe Bueno).

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