#CRÔNICA: Aos Berros

#CRÔNICA: Aos Berros

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Por Cássio Leonardo

Os dois se davam no grito, havia já muito tempo que eram casados. E desde sempre se resolviam aos berros. Ambos corriam cansados, casados. E casados com o que se perde depois, o encanto.  Um dia em meio a uma briga, um deles se silencia. Fora decretado o fim do encantamento. O outro, meio débil, não sabia para onde olhar, parou atônito e gritou mais alto, esperava assim no seu ato pago, que o outro gritasse em protesto, mas não, deu de ombros e se trancou no quarto, falando baixinho, não vale me exaltar. O outro furioso bateu porta, e pós sola na rua.

Do seu quarto quente, cheio de uma tristeza mansa, lembrou de quando haviam se conhecido. Um pouco espantado com essa memória involuntária deu de querer que ela não viesse, lutou bravamente para impedir, mas curioso que era, quis se lembrar da paixão sentida.  Era noite chuvosa, a cidade parada, ninguém andando pelas ruas. Ele saiu apressado do trabalho, cheio de uma angústia feroz. Ainda tinha de atravessar a cidade, mas não encontrava condução os raros táxis que passavam pela avenida, o ignoravam, ficava ofendido, diminuído a cada carro branco ocupado com alguém que tinha certa vitória estampada na cara.

Odiou todos aqueles que por ali passaram. Meio a contragosto decidiu esperar, ficaria ali até poder estampar em sua cara a vitória daqueles que conseguem um táxi, assim o fez.

Depois de longos minutos, eis que para sua surpresa, um carro para na sua frente. De um salto ele se põe alerta, os vidros escuros do carro vermelho, abaixam lentos, revelando pouco a pouco um rosto masculino cheio de dúvida.

-Preciso ir praticamente do outro lado da cidade. Não me lembro bem o nome da rua, mas sei que o bairro é conhecido pela recente construção do edifício Bumber One.

Mal pode acreditar. Pois, morava no Number one.

– Pois estou indo pra lá.

Nada mais precisou dizer, de um pulo entrou no carro, com a vontade nua de seguir. Afogueado, que estavas, não reparou no motorista.

As ruas o foram vencendo, sua irritação se diluía na neblina. Olhou para o motorista.  Que estava ali, calado, casmurro, cuidando distraidamente da sua existência, Existência essa que lhe pareceu por completo. O traçado da sua cara de homem, a linha do seu queixo bem marcada, a expressão limpa, que corria por toda a extensão de braços e pernas que de forma atrevida existiam, e assim jogavam ao mundo toda uma existência plena, que era livre. Com meia palavra balbuciada entre dentes, fez com que ele se deseja que as ruas fossem intermináveis, chegou a sonhar com a possibilidade de não ter fim.

A existência daquele homem era digna de ser aprendida, de ser copiada. Desesperado, notou com certa inquietação, que ele pertencia a si e pronto. Tentar apreender seria suicídio.

Chegando, desceram depressa do carro. Estavam ambos apressados, um para chegar em casa o outro para resolver enfim o que te levará até ali. Já no hall de entrada, insistiu que deveria pagar pela carona, e ao tentar formar a frase, lembrou meio atônito com seu imenso esquecimento que não havia perguntado o nome do homem que havia o livrado de ficar horas esperando por condução.

E não precisava, ou não queria saber, chegou à conclusão de que não se precisa de nome, talvez um nome desmentisse toda a existência daquele ser. Qualquer nome o reduziria a ser somente aquilo que o nome quer dizer e talvez ele não se fizesse maior do que isso, era melhor não se arriscar.

Agora já havia aberto o campo, e com um mundo de intenções disse.

-Como posso lhe retribuir a carona?

Talvez possamos tomar um drink no meu apartamento?

Estavam já no elevador.

Com extrema cautela ele recusou mas prometeu que ficaria para uma próxima, pois agora estava realmente atrasado para seu compromisso. Trocaram telefone e se despediram.  Chegando em casa suspirou entre aliviado e triste.

Não sabia por que, mas tinha a impressão de que existia menos que o outro.  No quarto se lembrou da sensação que tivera no carro. Tentando ali achar algum detalhe que por ventura provasse que ele também estava existindo dentro daquele carro. Foi inútil. Ele ainda não havia se comprado. Não dormiu, passou a noite querendo se comprar, mas não sabia como. Foi quando que de um susto percebeu que estava apaixonado.  Apaixonado. Pelas possibilidades da existência do outro.

Nesse mesmo dia, executou suas tarefas diárias saiu do trabalho parou na mesma rua a procura de um táxi. Nutria em si a esperança de ver seu redentor da noite passada, conseguiu um táxi sem demora e pode estampar na cara a vitória que ontem havia guardado.

 Logo que entrou no corredor que dava para seu apartamento, encontrou aquele mesmo homem que lhe havia dado carona na noite passada.

-Bem precisei voltar aqui, e resolvi aceitar o drink!

Entraram, os dois em absoluto silêncio. Havia no ar qualquer coisa de não declarado.

O anfitrião sentia seu coração batendo oco entre pulmões. Se lembrou então da sua paixão e pensou meio alarmado.  –  não se invade assim um outro ser, não se deixa ser invadido desta maneira. Longe de mim tu não existes, perto rouba meu ser, parece que nesses momentos tu vive de mim! Com que direito? Qual esse poder? Ou melhor, qual é minha fraqueza em você?

Estavam na sala, conversando sobre as culpas do mundo.

Até que como um tiro que lhe atinge pelas costas o outro solta.

– Bem, ainda não sabemos nossos nomes. Vou me apresentar …

Ele o interrompeu quase em desespero

-Mas, mas não existe necessidade de nos nomearmos. Nomes são quase como rótulos que carregamos por toda vida. Não precisamos correr o risco de nos reduzir a um nome.

Não entendeu muito bem o que o outro disse. Mas não se apresentou, com a placidez de um gato mudou de assunto e se estenderam por toda noite, que virou dia, que virou semana, que viraram anos. Enfim conseguiram entender que se queriam, com certa avidez.

 Existia no olhar dos dois uma necessidade mal dosada de estarem juntos, decidiram então se casar. O mais corajoso deles teve de oficializar o pedido e meio sem jeito, temendo o ridículo, deixou escapar no carro enquanto se dirigiam ao shopping.

-A emoção não sabe esperar. É dessas que teme o fim dos tempos!

Inocente, apressada. Sempre mal dosada. Emoção que me fez tropeçar em você, e esse tropeço bagunçou tudo. E bagunçou todo, e eu vou providenciar para que bagunce você!

Assim te sugiro que sigamos juntos nos bagunçando um pouco, vamos brincar de tentar rir juntos! Vamos brincar de seduzir, daí pulamos para qualquer coisa que o destino queira!

Te sugiro brincar de clichê, vamos tomar um café, e viver somente na hora.

E daí casaram.

Depois de se lembrar de toda história, notou que só amava o outro por que não se achava em si. E era por isso que gritavam, gritavam para sufocar o podre entre eles. Percebeu que enquanto amasse o outro só por ser inferior, não estaria amando, aquilo era fugir. Mas fugir de que?

Tinha medo de descobrir e por medo gritava, por medo ele havia entrado naquele carro.

O outro voltou abriu a porta entrou no quarto chorando. Esse por sua vez se levantou aos berros e aos berros terminou o que havia começado através do silêncio.

 

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