D e s c a r d i o p h o...

D e s c a r d i o p h o b i a

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Por Bia Rolff – Gauche – Parceira Contramão HUB

Ele se esticava pelo chão do quarto, ouvindo no mais alto volume The Piper at the Gates of Dawn. O disco de 67 era um de seus favoritos para noites como aquela. Sentia-se dentro de um filme de ficção científica em preto e branco, daqueles antigos e com efeitos pré-Mosca de Cronenberg. Uma verdadeira epifania acontecia dentro dele cada uma das vezes em que ouvia aqueles barulhinhos esquisitos de experimentação.
A sua própria experimentação.
Levantando um pouco a cabeça, ele verificou a dobra interna do braço. O tubo estava relativamente estável, e o seu sangue fluía por ele como vinho fresco. O ruído de pequenas borbulhas o fazia sempre pensar se advinha do líquido em movimento ou de um dos barulhinhos do disco de vinil. Talvez fossem a mesma coisa.
Ele tornou a se deitar, esticando os braços ao lado do corpo, numa posição vitruviana. O efeito do açúcar branco passava, mas o do pequeno doce ainda estava ali. Não era mais possível ter certeza sobre a veracidade do mundo, sobre a existência de Deus ou da finitude do homem. Tudo estava, como no Mundo Invertido, reflexo do universo que se expandia ao redor daquele pequeno apartamento.

O teto girou. Girou. Girou. Um caleidoscópio de cores e formas mantinham-no concentrado, de olhos para cima, rindo como se estivesse de volta naquele campo de flores vermelhas. O campo onde conhecera pela primeira vez o Anjo Negro. Aquela cujas canções o embalaram durante toda a sua infância. Toda a sua vida adulta. No peito, um stacato sutil, e aos poucos ele sentia os pequenos pedaços de si fluindo pelos braços. Abraçando a eternidade da sua felicidade.

Um bip. No vinil? Não, aquele era o bip específico do final do experimento. O som que lhe dizia estar chegando ao fim o caminho rubro, o caminho para a salvação. Mais uma vez, ele levantou a cabeça, dessa vez demorando um pouco mais de tempo para conseguir enxergar o braço pálido e fluorescente. Estava mesmo brilhando assim? Ele achava que sim. O sangue parara de correr pelo tubo, deixando-o apenas corado com pequenas gotas vermelhas. Virando a cabeça para o outro lado do quarto, ele olhou para o vidro transparente em cima da mesinha de cabeceira, mesinha esta que mal aguentava o peso do recipiente e balançava ligeiramente, como se desafiasse a gravidade. Dentro do vidro, a última gota pingava. O vinho estava pronto, mais do que fresco. Borbulhante. Olhando-o bem, percebia agora que parecia mais uma sangria. O nome era, inclusive, muito mais apropriado.

Ele deixou o corpo afrouxar, a cabeça tornar a encostar no chão frio e fechou os olhos. Fogos de artifício brilharam à sua frente, coloridos, grandes e fortes, repletos de uma verdade sobre o universo. Eram supernovas! Ou talvez poeiras estelares, ele não sabia ao certo a diferença. Bowie devia saber.

A música na vitrola chegara ao fim, e então o silêncio. O experimento mais uma vez dera certo. Como médico e monstro de si mesmo, ele estava em paz. O vinho saíra de seu corpo e com ele
partes de seu coração. Pelos seus cálculos, precisos e objetivos, seriam necessárias apenas mais algumas sessões para que ele, finalmente, não ouvisse mais os barulhinhos dentro de si.

Fonte: tumblr

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