Filme aborda o Brasil recôndito

Filme aborda o Brasil recôndito

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Filme Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos. Foto: Divulgação.

Entrevista com Renée Nader Messora e João Salaviza, diretores do longa-metragem “Chuva é cantoria na aldeia dos mortos”

Por Iakima Delamare*

Sobre cinema na aldeia

Em cartaz em Belo Horizonte, no cinema Belas Artes, na sessão das 16 horas, o longa-metragem dirigido por João Salaviza e Renée Nader Messora, “Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos”, mergulha na ancestralidade e fala da relação dos povos tradicionais com a morte e o luto a partir do contato com uma aldeia indígena localizada em Pedra Branca, interior do Brasil.

RENÉE: Meu trabalho na aldeia Pedra Branca começou com uma experiência muito parecida ao VNA. Primeiro eu fui pra lá fazer um documentário sobre essa liderança Krahô, o Pohi, que já faleceu. Fizeram pra ele uma grande Festa de Fim de Luto (Pàrcahàc) que é a festa que a gente vê no filme. Foi o primeiro contato que eu tive e quando eu voltei para São Paulo eu só sabia que eu queria voltar pra lá. E eu tinha acabado de conhecer a experiência do VNA, na verdade. Eu venho do cinema, eu era assistente de direção, fazia publicidade e não tinha nada a ver com este universo indígena.

Então eu escrevi um projeto e fui lá fazer uma oficina com várias aldeias Krahô e a Pedra Branca era uma dessas aldeias. Depois eu voltei à convite da própria aldeia para desenvolver outras oficinas até que no fim eu escrevi um projeto grande, passando um ano na aldeia porque aí acabou se formando um grupo de jovens realizadores, cinegrafistas. A maior preocupação deles era o registro etnográfico, desse saber que de alguma forma podia estar se perdendo.

Só quando eu voltei para este projeto mais longo de um ano a gente começou a trabalhar outras coisas e vieram as ideias de ficção. O espectro de cinema se abriu. Eles começaram a perceber também outras formas de usar aquela ferramenta. Eles fizeram um filme que a gente descobriu que acabou circulando entre várias terras indígenas, que era um filme que chamava Tudo Por Um Litro. Eles começaram a entender um pouco mais esses jogos da ficção e como podiam usar esta ferramenta e já em 2015 a gente já tava começando a preparar o Chuva a energia tava quase chegando na aldeia e a gente começou a filmar.

Acho que todas estas experiências foram criando esse terreno sobre o qual a gente conseguiu construir a narrativa do Chuva. Tem momentos em que o filme tem uma mise-en-scène cinematográfica num ponto clássico, quase um cinema clássico. Aquela sequência da fogueira onde tem plano, contra plano, conversa, jogo de olhar, aquilo foi super trabalhado, nada ali é por acaso. Mas depois se for ver a sequência da festa, aquilo lá foi a gente se adaptando à realidade que tava ali na nossa frente. A gente vai conseguir transformar aquela realidade em material fílmico né? Como transformar aquilo em algo que jogue a favor da nossa narrativa? Porque a gente não ia produzir uma festa. A gente jamais pediria pra que eles fingissem que estão chorando ou cantando nessa festa.

Foram duas Festas de Fim de Luto que aconteceram durante estes nove meses que a gente filmou. Elas aconteceram em épocas totalmente diferentes do ano e isto no cerrado faz uma diferença brutal na iluminação. Na seca é uma coisa e na chuva é outra. Então aí também entra o cinema né, o cinema que vai dar conta de fazer aquelas duas festas parecerem a mesma. Que sequer era do pai do Ihjãc.

Então este registro vai se adaptando às necessidades e às possibilidades do filme. A gente não tentava ir contra a maré, a gente tentava ver como era o fluxo das coisas e ele (filme) tenta acompanhar esse fluxo. Por isto que a gente demorou tanto tempo pra filmar. O Ihjãc mesmo, muitas dos dias ele tinha coisa para fazer. Tinha que ir na roça, tinha que pegar palha e o filme vinha sempre depois. O filme não era prioridade, nem do Ihjãc, nem da aldeia, de nenhuma das personagens, talvez nem era nosso (risos)

JOÃO: alguns dias era mas muitas vezes não. Tinha tanta coisa rolando ali né?

Sobre a complexa categoria “cinema indígena”

JOÃO: sobre essa questão do “cinema indígena”. A gente conversou sobre isso, mas a gente não consegue muito bem localizar o filme…

RENÉE: A ideia de “cinema indígena” eu acho meio complexa. Eu não sei se meu filme pode ser considerado um cinema indígena. Eu acho que não. Eu acho que o cinema Indígena tem que trazer outras formas de fazer cinema e não a mesma. Nosso filme quebra com várias ideias do cinema clássico. Mas eu estudei cinema em escola tradicional ocidental e eu não consigo sair muito disso. Então eu acho que o cinema indígena, talvez, deveria um pouco romper com esta forma de olhar e trazer outras. Como já tem. Eu tenho visto alguns filmes que não tem essas referências e esta forma de olhar para o mundo e pras coisas que a gente tem.

JOÃO: a própria construção da narrativa do nosso filme mesmo que tenha algumas bifurcações — como aquela cavalgada de um minuto — mesmo assim é ancorado numa tradição narrativa clássica, greco latina. A gente não descoloniza o olhar por decreto, é impossível. Por mais que a gente tente combater estes automatismos intelectuais e emocionais, não sai assim de uma hora pra outra. Agora, é muito interessante esta produção indígena que está vindo aí, realmente feita por indígenas, sobre temáticas indígenas Neles você raramente encontra uma construção narrativa como essa.

Sobre traduzir o inacessível

JOÃO: Talvez a gente esteja nesse lugar de pensar como a gente consegue traduzir com imagens um universo que nos é totalmente inacessível. O universo dos espíritos a gente consegue entender num plano conceptual e consegue imaginar algumas coisas a partir dos relatos deles e você dá alguma forma. A gente pensa no cinema como uma ferramenta para tentar fazer essa tradução que a antropologia tenta por outro caminho. Mas as vezes acho que é perigoso cair numa espécie de ilustração que se sobreponha ao imaginário Outro, o imaginário de onde essas histórias existem.

A gente pensa muito no nosso filme. Tem um risco de cair na ilustração, na romantização. É um terreno cheio de riscos e possíveis contradições. A gente fica muito feliz de ver a sequência do início do filme e o Ropoxet também fala: é desse jeito mesmo, a gente encontra o Mekarõ é assim mesmo”. Então a gente pensou em como filmar essa sequência de uma forma mais ou menos naturalista. Que ela é. O menino chega, fala pra água. Não vê o pai, a gente não sabe se é a câmera que não vê o espírito né? A nossa câmera não é pajé. Então a gente não vê o espírito. Talvez o Ijhãc tá vendo ou talvez não tá, mas a câmera não vê.

Mas a gente tentou filmar esse relato de uma forma mais ou menos naturalista, apesar daquela luz. Porque a forma como ele nos contou desses encontros, o relato não é diferente de “eu tava andando no mato e encontrei o vizinho caçando” ou “eu tava andando no mato e encontrei o espírito do meu pai. Não é muito diferente da forma como eles contam porque de fato o mundo espiritual e o mundo material estão ali diluídos. Na Europa muitas vezes nos perguntam: “essa sequência mais fantástica ou mais onírica” e a gente fala “não, não tem nada de onírico” até porque o Krahô não faz essa divisão. Não tem subconsciente pro Krahô.

RENÉE: Se aquela sequência talvez fosse filmada com uma luz mais naturalista, ninguém falaria isso. Na verdade isso vem de uma incapacidade nossa de filmar naquelas condições, no meio do mato, para a equipe era impossível, então foi meio que uma solução que o filme encontrou.

Elenco e realizadores do filme “Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos”

Sobre o equilíbrio entre narrativa de sensibilidade subjetiva e comentário político

RENÉE: a nossa grande preocupação, nem era uma preocupação, era uma vontade com esse filme era tentar filmar esta subjetividade desse menino Krahô, que são muitos meninos Krahô que a gente convivia durante tanto tempo e a nossa grande vontade era dar conta disso.

JOÃO: e é esse menino, não é um adolescente genérico

RENÉE: e esse menino, essa história, que queria contar. Porque é claro, a gente também pensa que nessas outras narrativas é como se o índio não existisse antes do branco. Ele só existe a partir do momento em que tem um branco querendo roubar a terra dele ou olhando para ele e falando: “olha só que bonito, que exótico, olha essa festa que ele faz, olha como ele se veste, olha essa pintura corporal do índio”. E na nossa cabeça esse filme não queria dar conta disso. A gente queria contar a história de Ijhãc, desse Krahô que é adolescente hoje num Brasil tão hostil à existência dele.

É claro que é impossível você falar de um índio hoje e não esbarrar nessas outras questões. É claro que construímos ideias, e muitas coisas dali estão porque escolhemos que estivessem, como aquela parada do agronegócio ali no meio da cidade, é claro que eu escolhi botar aquele plano ali, eu achei necessário e eu escolhi botar o hino nacional também naquela sequência. Mas esse nunca era o foco do filme, e também mesmo que não escolhêssemos fazer isso, essas coisas estão sutilmente na cidade. Essa agressividade ela existe, tá ali o tempo todo. Talvez se eu não tivesse pontuado algumas dessas coisas essa ideia ia passar um pouco mais despercebido. Mas isso existe, isso tá lá.

Sobre Kôtô e a possibilidade de um filme sobre as mulheres indígenas

JOÃO: a Kotô cresceu muito durante a filmagem.

RENÉE: a Kotô na verdade, é uma menina muito tímida. Pra ela falar pra gente, demorou muito. As mulheres Krahô, são muito tímidas, é muito difícil você aceder ao universo feminino e eu acho que isso é uma especificidade de vários povos, não é só o Krahô.

Eu sempre tinha essa vontade de ter uma protagonista feminina. Porque é realmente um universo, mas é um universo quase secreto. Ainda mais para quem não fala a língua. Mas conforme a gente foi filmando a Kotô ela foi se mostrando e as vezes ela continuava tímida e fechada mas ela entendia perfeitamente a nossa proposta para as cenas e ela conseguia inclusive contribuir com as ideias dela para o desenrolar das sequências. Durante o processo ela foi ganhando cada vez mais força e agora eu olho para o filme e a Kotô, para mim, tem uma coisa muito especial.

Tenho muita, muita vontade de trabalhar com as mulheres inclusive quando eu comecei a fazer as oficinas umas das condições era que fosse metade metade as turmas, metade meninos e metade meninas. E quando comecei essa molecada tinha 13, 14 anos, só que com o passar do tempo elas vão engravidando porque lá o pessoal engravida muito cedo, então elas viram mães e acabam ficando naquela rotina da maternidade.

Tem uma coisa ali do universo feminino que é essa realidade de que elas são mães cedo né, então fica mais difícil dar continuidade aos trabalhos. Mas sim, tenho muita vontade de conseguir levar a cabo um projeto só de meninas. A gente continua trabalhando na aldeia, continua pensando em coisas para fazer com eles.

JOÃO: Sobre a cena delas na água, ela reflete muito do que a Renée disse, da Kotô ser bem tímida. No começo quando a gente decidiu filmar com Ihjãc a gente tinha esta ideia desta macroestrutura do filme mais ou menos inspirada neste outro menino que passou por um processo semelhante, fugiu para a cidade durante um ano e acabou voltando. A gente tinha mais ou menos estas âncoras para poder ir filmando e tentar introduzir outras coisas no processo.

Quando começamos a filmar com Kotô, eu acho que uma das primeiras cenas que nós filmamos, a gente filmou mais ou menos de uma forma cronológica é a cena do Ihjãc contando para Kotô que tá virando pagé. Aquela cena dos dois deitados na casa que eu acho que é uma cena super bonita, de uma intimidade total. Mas a gente pensou que ela continuava sendo essa figura da mulher que apoia o homem, escuta o problema do homem. E que a Kotô não pode ser só isso no filme.

RENÉE: E ela não é. Ela é o oposto. Ela é quase mais um problema para ele. Acho que ela é a força do Ihjãc. Ela é aquilo que faz ele pra frente.

JOÃO: Mas essa cena da água é muito interessante porque a gente propôs ela escolheu pessoas com quem ela queria filmar. Claro que a gente ia ter também a proposta de ficção. Na água que tem todo o lado lúdico e tem as crianças brincando, tem uma coisa cotidiana aqui muito mais interessante do que aquele clichê do cinema do que duas pessoas em cima de um prédio olhando a cidade e conversando contemplativamente sobre seus problemas existenciais. Ali não, ali há um fluxo, tão banhando, tão brincando e tão conversando e tem gente ali perto.

Sobre a língua Krahô

JOÃO: o que a gente saca hoje da língua Krahô nos permite entender dos temas das conversas. A gente consegue ter falas muito simples como “vem cá”, “vamos comer”, “cadê você?”. Mas a gente não consegue ter uma conversa. Mas tinha uma coisa assim nossa, de entender uma verdade da cena quase como se a língua fosse gesto também que vem de ter uma intimidade com eles.

RENÉE: não importa saber exatamente o que elas estão falando porquea essência da cena tá em outros lugares que tem muito a ver com a própria forma deles de se expressar. Os Krahô se expressam de outras formas que não é só o verbal.

Essa relação de poder que é estabelecida quando você aponta a câmara para alguém, quando você não entende o que a pessoa está falando ela é quebrada então a gente também fica numa posição um tanto frágil no momento em que a gente não entendia exatamente o que eles diziam. A gente também tinha que confiar neles.

É quase como se eles dirigissem a gente. Era uma coisa de ida e vinda porque a gente também tinha que confiar demais neles, eles confiavam na gente mas nós tínhamos que confiar muito neles.

E foi muito bonito também que por conta disso, este ato de dirigir o filme, que geralmente é um ato de um querer um diretor,ele é o grande senhor do filme. A vontade dele é tem que ser é. Isso daí foi totalmente de outras formas também, dessa diretamente, em relação ao material fílmico, mas assim do que a gente conseguiu captar a gente não tinha o controle de tudo a começar pela fala deles , isso foi muito bom, eu acho que foi muito bom.

JOÃO: fazê-los donos da sua própria fala mesmo que a gente não os entenda.

Sobre os diálogos

JOÃO: Não queríamos que fosse um processo de entrevista que tem esta espécie de ping pong dialético que é: “eu quero que você fale sobre isso e você responde”. “Onde você mora? Quem é sua esposa?”. E você pergunta até chegar nas respostas. Então a entrevista é um dispositivo, é claro, tem coisas incríveis mas existe um jogo de poder e para nós era mais interessante que a gente sugerisse temas.

Essa fala do Ropoxêt na cena da fogueira quando ele fala sobre a ambiguidade do pajé, o plano dele, que é um monólogo de dois minutos falando sobre o pajé, este plano não existia na montagem. A gente terminou a sequência no Ihjãc. Quando a gente finalmente fez a tradução, meu pai assistiu e disse “eu não entendo qual é o problema desse menino em virar pajé. Pajé “é uma figura incrível, pajé é um velho sábio que usa cachimbo, é uma coisa maravilhosa…”

RENÉE: isso é uma idealização nossa. O pajé é uma figura super ambígua, problemática. Tem gente que odeia, tem gente que atravessa a rua quando vê um pajé.

JOÃO: mas é também esta coisa, como que a gente pensa um procedimento de cinema para introduzir uma coisa que é didática entre nós. A gente está fazendo uma tradução…

RENÉE: queremos que se entenda.

JOÃO: queremos tornar as coisas mais ambivalentes possíveis, então tomara que nosso filme não contribua para reproduzir este estereotipo do pajé que é uma figura iluminada, é muito mais interessante mais complexificado assim.

JOÃO: Quando filmamos Ropoxêt falando sobre o pajé o procedimento cinematográfico era: “Ropoxêt você tá aqui, tem o Ihjãc, tem Kotô, tem figuras mais jovens, fala para eles, eles sabem a figura do pajé, mas fala para eles sobre isso e não pra nós”.

Sobre a cosmologia e o encontro entre ficção e documentário

JOÃO: O mito para eles não é, é a história do antigo mas não é uma mentira. Não é uma lenda, o mito é realmente o sol, a lua…

RENÉE: É como ele falou ontem…hoje o bicho não fala mas…de começo todo o bicho falava…

RENÉE: isso daí…passado…ele reconhece como passado, não reconhece como um tempo mítico

JOÃO: Ele sabe que foi há muito tempo.. mas existiu…

RENÉE: talvez o tataravô dele pegou esse momento e não é um outro tempo, é um tempo anterior,

KIMA: ou nem tanto, né? A arara fala com ele no filme.

JOÃO: Exato, a arara fala.

KIMA: acho que isso é interessante, vocês colocam tudo no mesmo nível. Todos os acontecimentos, ces aterram eles.

RENÉE: era uma coisa muito importante para a gente que esse mundo fosse contíguo. Ele não é outro, é o mesmo, o mesmo plano.

JOÃO: isso se vê na aldeia todo tempo.

RENÉE: Sonho não é só sonho. Seu Karõ sai do corpo e faz tudo aquilo.

KIMA: Karõ é o que exatamente?

JOÃO: Karõ é o espírito, um duplo que tá por aí. Quando você tá doente, é também o espírito que saiu do seu corpo e o trabalho do pajé é trazer ele de volta. As vezes ele consegue, outras vezes não dá conta. O pajé vai realmente no mato, conversa com o espírito, volta para a aldeia, conta como foi este encontro. Eles contam histórias de porrada, que bateu, que puxou o braço e falou que não ia voltar…

RENÉE: eles apanham, é perigosíssimo!

JOÃO: e o Mekarõ é o seu duplo, a sua sombra. a imagem numa foto é o Karõ, o reflexo na água é o Karõ… O espírito é o Karõ. É um duplo, um espectro. Esta palavra é tão complexa que a gente decidiu não traduzir para o filme.

RENÉE: mas essa palavra não é só o espírito, ela é o desdobramento. A palavra no decorrer do filme vai ganhando sentido.

RENÉE: é tão difícil traduzir um conceito que é tão amplo, quer dizer, não era interessante traduzir, só perdia, reduzindo isso a palavra escrita.

JOÃO: a palavra foi uma decisão super difícil de “será que a gente assume que é o espírito e pelo menos a gente dá conta de um dos sentidos da palavra?” ou a gente corre o risco de ela não ser absolutamente nada?

RENÉE: mas eu nunca achei isso…

*(Entrevista editada pelo jornalista Felipe Bueno).

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