Por Ana Clara Souza

Você, talvez, demore a raciocinar para chegar à resposta. Mas não se preocupe: creio que, até o final desta crônica, a resposta vai te encontrar, ou vice-versa. Agora, se for uma pessoa semelhante a mim, afrolatina, mulher gorda, com quadris fartos, cabelos castanhos escuros, boca carnuda, nariz largo, e artista da dança, possivelmente  isso nunca deixe de ser um questionamento. 

 

Chega a ser cômico quando lembro da reação das pessoas ao me assistirem dançar. Eu, junto de todos os outros adjetivos redigidos acima, ter a capacidade de saltar, levantar a perna, ter molejo e me destacar? Não é possível! (Indignação normativa de pessoa branca, com olhos claros e magra.)

 

É engraçado pensar que ainda existem pessoas que acham que corpos negros, gordos, ou qualquer outro humano que fuja da normativa europeia, branca, magra, olhos claros…, não possa sentir o gozo de dançar, principalmente, de forma profissional. O fato de ser um problema estrutural/cultural diz muito, mas não tudo. E por que não existe um esforço para mudar esses questionamentos, que, a meu ver, são fúteis? 

 

Bom, decerto essa resposta não estará no final desta crônica. É só uma pergunta retórica (talvez). Gastamos o ouro para quem descobrir a resposta do título. Não fique triste, porém! O que se passa na cabeça das pessoas, por mais que se trate de nós e de nossos corpos, não é nossa responsabilidade. O que não quer dizer que não nos importamos.

 

Há uns dois dias, uma amiga, também bailarina, veio questionar algo, no grupo de WhatsApp de nossa Cia., sobre o espetáculo a que havíamos assistido. Nos questionamentos, estava a inconformação pela quantidade de bailarinos negros a compor o espetáculo. Ela, como mulher negra, não aceitava o fato de uma companhia tão “desconstruída e diversa”, como ressaltado em todos os flyers de divulgação, contar com 98% do elenco branco, e com corpos tão “normais”.

 

Como lugar de troca, me indaguei. Antes de respondê-la, eu só sabia pensar na perfeição daquele espetáculo, que me fez cair o queixo com a composição, as luzes e os corpos-padrão. Aliás,  também admiro  ou  admirava  corpos-padrão, e, por muito tempo, quis me normalizar corporalmente. 

 

O que consegui responder, a ela, foi a realidade que sempre existiu para mim. Como já falado aqui, por ser um problema estrutural, corpos negros não conseguem se dedicar tanto a prazeres como a dança ou qualquer outra arte. Os motivos são vários. Dentre eles, a grande parte da população negra residente em periferias, distantes da polarização cultural das cidades. Pela forma como a cultura é elitizada no Brasil, a arte e as expressões culturais tornam-se extremamente caras e inviáveis para os cidadãos considerados negros, que se encontram na pobreza, segundo diversas pesquisas. 

 

Sinto que todas as oportunidades no mercado artístico e não só nele, mas nos mercados como um todo —, os normativos imagéticos, com características finas, claras e altas, abocanham tudo, como cães treinados e focados em não errar. “Como”, não! Eles são treinados e focados “para” não errar, pois têm mais oportunidades. Em sua grande maioria, são pessoas com estrutura para recomeçar, até que atinjam os objetivos almejados. 

 

Situação muito diferente  como todos sabemos daquele corpo que descobriu a dança já tardia (às vezes, até demais), e é criticado por toda a sociedade, que faz questão de lembrá-lo de seu lugar, muito distante da vida artística, mesmo que dotado de tanta cultura. 

 

Depois de tanto pensar, para redigir uma resposta a minha amiga, me orgulhei! Por saber que corpos fora do “padrão imagético”, dia a dia, tentam conquistar lugares de representatividade, e têm menos palco para esse tipo de companhia. 

 

Minha felicidade foi um delírio. Para grande parte das pessoas, nós, pessoas normais, que movimentam o corpo por prazer e amor, não temos o mesmo holofote. O porquê? Simples: preconceito. 

 

O corpo que se destaca pelo preconceito, porém, é um corpo. Normal. Simplesmente, corpo.

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