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Crônica

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Por Débora Gomes – . as cores dela . – Parceira Contramão HUB

Sempre que chove, eu me lembro d’ocê. A sua mania meio breve de dançar debaixo dos primeiros pingos de tempestade, pra depois ficar olhando de esguio pela janela entreaberta, como a chuva cai e muda tudo lá fora. Cê gostava do cheiro da terra molhada lavando teu jeito rápido de respirar. Cê achava bonito o céu cinza ir se clareando à medida que tudo diminuía a intensidade e voltava a ser em cor. Eu dizia sempre que era lágrima do céu em ver a gente tão distante. Cê dizia que era de alegria por distância nenhuma separar nossos corações.

É por isso que, sempre que chove, eu fico em silêncio esperando passar. Mãe acha que é por medo dos trovões. E só ocê sabe que eu tô é me lembrando do medo que é esquecer. Li um poema uma vez que me ensinou que deslembrar demora. Que a gente tenta, tenta… Mas demora. Aí vou fazer café, ler um livro, pintar as unhas, comer um pedaço de bolo de chocolate com geleia de framboesa. Porque a gente esquece quando se distrai. Quando já nem se importa mais em esquecer ou lembrar: porque até disso a gente esquece.

E é um pouco por isso que eu não gosto quando chove. Me dá uma baita agonia que me faz preferir os intervalos secos entre agosto e setembro. Não há nada que eu possa fazer, a não ser escrever a mesma rima pobre de quem perdeu até o jeito de amar sem pressa, sem gerúndio, sem sinônimo, sem ponto final. Jeito de quem se esforça pra não pedir pr’ocê voltar. Jeito de quem rascunha um punhado de carta, mas sequer envia, porque silêncios magoam mais que qualquer desamor.

Porque eu sempre vou me lembrar d’ocê quando chove. Basta começar a nublar que a lembrança já fica pronta na beira, pra se jogar no abismo de mim. Teus olhos pequenos, teu sorriso de menino que é livre e nunca soube ser raiz, tua melodia carregada no próprio nome, teus desejos de que eu fosse feliz. Quando abre um sol sem preguiça, desses dos entardeceres de verão, eu me esperanço toda. Mas, no fundo, eu sei… Que desde que cê escolheu ir embora, fez-se uma bagunça na estação do meu peito e tem chovido todo santo dia, do lado de dentro de mim.

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Por Giovanna Silveira – Metrica Livre – Parceira Contramão HUB

Ela ficaria lá por horas, se deixassem. Sentada na cadeira de canto da cozinha, contando aos netos ou para quem passasse por ali as infindáveis histórias de quando ainda morava no interior, e vivia como a ovelha mais desgarrada que se pode imaginar de um rebanho. E com saliva de orgulho renascido, ela então narra a memória mais vívida que ainda centelhava a cabeça. E começava:

 – Eu já contei pra vocês da vez em que eu fugi do colégio e nunca mais voltei?

– Já Vó, foi aquela vez qu..

– Pois então, foi assim: Eu tava lá na aula de matemática do 3° ano do colegial, naquela época se passasse pro 4° ano já poderia fazer um magistério sabiam? Érr, então, uma certa vez minha professora viu que estava conversando demais e trocando bilhetes com minhas colegas, e foi aí que ela fez a ameaça e gritou pra sala toda ouvir: “LUZIA!! Amanhã quero você aqui na frente da turma, recitando a tabuada toda! Não quero saber de chororô. Se não vier vai reprovar!” – Eu fiquei vermelha até o último fio de cabelo… E no meio da aula comecei a maquinar como eu ia fazer pra me livrar de recitar a tabuada na frente de todos os meus colegas. Até que eu pensei… ah! Seria tão ruim assim reprovar? Pff, nem liguei. Só sei que pensei no dia seguinte em vestir meu uniforme, e ao invés de seguir o percurso pra escola, segui pro canavial de papai. Já que eu teria que passar umas horas fora, que fosse trabalhando, não é? E assim eu fiz… uma, duas, três semanas trabalhando no campo. E eu gostava bem viu! Até trouxe minha irmã, que já não estava mais gostando das aulas, e ela se juntou ao meu esquema de trabalho voluntário na fazenda de papai.

E tudo estava indo bem, até o dia que a casa caiu pra nós duas –

Sempre quando chegava a esse clímax da história, ela sorria de uma forma indescritível;

– Meu pai foi para a beira da estrada esperar que a gente voltasse da escola, com o grupo de meninas que sempre nos acompanhavam… até que ele notou que nós não estávamos lá, e chamou a atenção delas: “Cadê Luzia? Efigênia? Não voltou com vocês não?” – E a partir daí só sei que elas contaram a verdade nua e crua, nós fugimos da escola por causa da matemática.

Eu morria de medo de papai, ele fazia o porte bravo e ditador, que só de olhar você já sabia que estava em apuro… então ele veio, bufando de volta para a casa contar para minha mãe a novidade e convocar meus irmãos a procurar as irmãs noviças pela cidade. Foi aí, que como já era hora, voltamos pra casa de uniformes e mochilas como se nada tivesse acontecido e nos deparamos com a cena, o circo pegando fogo e já não tinha mais jeito, contamos tudo.

– É engraçado lembrar, que depois de tanto esbravejar, quando papai soube que eu e Efigênia matamos aula para trabalhar no canavial, ele abriu um sorriso maior que o rosto…

A essa altura ela gargalhava!

– Papai era terrível, Deus o perdoe…

 Sua feição muda para uma nostalgia quase palpável

– Eu fugi da matemática, fugi da vergonha. Não me arrependo não, pelo menos nunca esqueci a tabuada!

Era impossível não ouvir. Era impossível não emprestar os ouvidos a cada detalhe minucioso e manjado da história de fuga mais engraçada e astuta já tida em tempos. E tão somente ela sabia como contar suas histórias… reforçar um detalhe, esconder outro, só para fazer parecer um interesse súbito dos ouvintes a cada vez que contava. Feliz de quem, assim como eu, ouviu os contos vivos de Luzia.

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Em memória da luz mais bonita que já brilhou sobre mim, Luzia.

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Por Auspicioso Acapela – Parceiro Contramão HUB

Ela conhece o passado e vive o presente. Acorda todos os dias com o barulho do despertador, pensando nos cinco minutinhos a mais que ela pode ficar na cama. Quando se levanta, a cabeça já ligada no 220, considera todas as pendências que precisam ser resolvidas no trabalho, e ao pegar o telefone visualiza a mensagem no grupo do WhatsApp da turma da faculdade, lembrando do relatório que precisa ser entregue. O dia já começa com malabarismos.

Ao chegar no trabalho despacha as demandas mais rápidas, enquanto abre um documento em branco no Google Drive para escrever o relatório durante o dia. Conforme as horas passam, novas tarefas surgem e o documento continua em branco. De tempos em tempos, bate o olho no relógio e realmente o tempo não para, a sensação é que se passa cada vez mais rápido. A inquietação surge e, ao mesmo tempo que está escrevendo, o telefone sem fio toca. Rapidamente, atende o telefone e volta para a frente do computador – “família escola, fulano, boa tarde!” – conforme a pessoa fala, o foco é dividido em dois. A ligação é resolvida, mas é necessária a impressão de um documento para ser entregue no primeiro andar. O relatório é deixado de lado e ao passo que o documento é impresso e o elevador é chamado, na cabeça é montada uma possível ideia para finalizar o trabalho da faculdade.

Cinco horas da tarde, bater o ponto e ir para a faculdade. Ao chegar, ir direto para o laboratório de acesso livre, fazer a conclusão do relatório, imprimir e entregar. Tchau, foi! Hahaha. No momento que é entregue, o peso do dia é retirado da cabeça e agora continuar as poucas horas do dia, para ao fim dar “olá” ao travesseiro.

Penso sobre a correria do dia a dia e o fato das pessoas serem colocadas sempre no modo multitarefa. Acredito que a maioria delas conhece o passado e vive o presente, mas sempre tentando visualizar o futuro. Questiono se essa situação realmente favorece o futuro, ou é apenas uma forma de desgaste humano. Talvez esteja na hora das pessoas cuidarem mais de si mesmas.

Por Melina Cattoni

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Foto Reprodução

Por Auspicioso Acapela – Coletivo parceiro Contramão HUB

Belo Horizonte, às seis horas da manhã, olho pela janela do quarto e observo as pessoas andando, algumas apressadas outras caminhando, reparo também algumas pessoas esperando o ônibus. Noto crianças e adolescentes com os uniformes das escolas do bairro e, principalmente, com os fones de ouvidos na orelha. Imagino se eles estão ouvindo música ou as notícias. Se minha avó estivesse viva, logo estaria falando – menina, tira esse trem do ouvido, quer ser assaltada? Você sem esse telefone não sobrevive! -. Rio com essa imagem na cabeça. Bom, hora sair e me tornar mais uma no meio da correria do dia a dia.

Estou na linha 8108 – Cidade Nova / Savassi, já sentei e me escorei na janela, quem sabe dá para tirar um cochilo. Na minha frente, ouço a conversa de um pai com o seu filho – já está na hora de começar a estudar para um concurso público, estabilidade financeira e carga horária reduzida. Você já pode parar de brincar de escrever. – Mesmo sonolenta, escuto a conversa com clareza.

Com a mente desligada, meu cérebro embaralha o pensamento da minha avó com a conversa. E de repente, minha cabeça tem uma estalo. O pensamento dela faz sentido. Ocorrem assaltos todos os dias e em diversas situações. Assalto – subst. masc. ataque repentino com uso de força, para retirar algo da pessoa –. Acabei de presenciar uma situação de assalto, o pai retirando o sonho do garoto. Paro para pensar em quantas situações, situações simples na verdade, em que as pessoas acham que tem o direito de abolir com algo de outro. Isso realmente é um assalto! Quem diria que quando minha avó puxava a minha orelha, ela tinha razão.

Subo a rua da Bahia, observo o movimento e realmente a frase “subir Bahia, descer Floresta” faz parte da vida de muitos mineiros, inclusive da minha. Com o pensamento da minha avó ainda na cabeça, imagino quantos sonhos já foram roubados naquele pequeno trajeto.

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Foto Reprodução internet/ Blog Homem de Palavra

Por Mateus Fernandes da Silva

Meu celular despertou acionando minha cama que me colocou de pé, em frente ao painel de comandos. Apertei o que abria o teto de casa. O sol forte junto com os bem-te-vis entraram sem pedir licença. Olhei para cima, o trânsito estava étimo para àquela hora da manhã, oito e meia.

Fechei o teto e deslizei até o banheiro. Mergulhei na minha piscina aquecida para ter certeza que estava acordado e tomei um banho rápido no chuveiro natural que ficava fundo: uma linda queda d’água que desviei das Cataratas do Iguaçu.

Desci na escada rolante até a cozinha e fiz meu pedido no “Comida Expressa”, que demorou 3,12 segundos para ser entregue. Rápido? Que nada! Como moro num condomínio, a comida demora 1,09 segundos a mais do que as pessoas que moram no centro ou em apartamentos normais. Comi, escovei meus dentes rapidamente e fui até o painel de roupas na sala. Escolhi o terno preto risca de giz e, por uma pequena abertura no teto, a roupa caiu sobre minha mão direita. Vesti. Peguei meu carro japonês flutuante e fui. Gastei 30 minutos de Foz do Iguaçu ao Rio de Janeiro. Demorei um pouco, pois na Avenida das Nuvens, estava acontecendo um protesto sobre a liberdade da relação afetiva entre pessoas de sexos diferentes. (É, os homossexuais conseguiram os seus direitos, ao contrário dos heterossexuais que hoje lutam pelos seus.)

Segui até a Prefeitura Municipal para uma reunião importantíssima: se deveria ser construído mais um parque aquático em Júpiter. No final de tudo, decidimos que seriam construídos dois.

Estacionei meu carro sobre uma das árvores no Pão de Açúcar e filosofei: “O amor está em cada curva entre as nuvens, o poder de expressão na boca do povo a solidariedade reina… A maior economia mundial é o Haiti, e a menor os Estados Unidos. É, os EUA se perderam em luxo e faleceram em meio aos hambúrgueres do MC Donald’s. Crianças entram na escola aos 2 anos e se formam aos 15. Doméstica? Pedreiro? Gari? Não existem mais. Todos qualificados e têm bons trabalhos. (São os robôs que executam esses serviços, afinal, não sabem pensar ainda!)”

Quem diria?

Mas… por fim, abri os olhos e acordei. Estava cercado de lixo, de tristeza, de repressão, de injustiça, de corrupção. E eu estava somente sentado em uma rua qualquer, de uma cidade qualquer, num país qualquer, exercendo a minha função de cidadão, de um cidadão qualquer… Sem eira nem beira, perdido em meus sonhos…

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Arte reproduzida site Hype Science

Por Grégory Almeida

Naquela quinta-feira, 23/03, acordei com muita pretensão de sorrir e admirar o belo. E lá fui, disposto. Como na rotina, meu ônibus, depois o Move e depois outro Move para chegar à rua Paraná, próximo ao ganha pão. Até aí, tudo bem.

O ônibus começa a encher de homo sapiens na Avenida Brasília, em Santa Luzia. Eu, já em pé, naquele equilíbrio que não tenho, me pego observando uma moça. Ela, coitada, com uma bolsa enorme, fone de ouvidos e séria, mas percebi no abrir dos lábios que usava aparelhos. Fiquei lá na minha e ela no equilíbrio dela com aqueles olhos verdes. Lindos!

E o ônibus continuava a encher, até que ficamos lado a lado.

Vejo a “paisagem”, passamos a Linha Verde e chegamos a Pedro I. Ali começara a minha admiração à menina de olhos verdes. Com o celular a mão, a câmera frontal como espelho, a bolsa na frente. E a bolsa era enorme, quase uma mala. Ela me tira uma outra bolsa de dentro e o meu olhar se torna fixo.

Tira um tubinho, no equilíbrio, uma mão com o celular, a outra com a bolsa menor, e entre os dedos o tubinho com o creme. Faz cinco pontinhos no rosto. E eu pedindo a Deus para o motorista não frear bruscamente. E eu ainda a olhava, já com o olhar 43. Esfregou os pontinhos em movimentos circulares. Pensei, será que ela vai se arriscar mais? Arriscou. Meus caros, o ônibus não esvaziados e ela inerte. Linda, “lacrando” que diz, né? Pois estava.

Eu já a admirava pela astúcia, habilidade e indiferença. Indiferente aos meus olhares. E até que nós olhamos num momento que ela virou o celular e me pegou pelo reflexo da câmera. Disfarcei, mas ela me percebeu quase que batendo palmas.

Ela pega um pincel de tinta (não sei o nome correto) e uma esponjinha linda, da cor de salmão e me distraí, mas depois vi um potinho com um pó também salmão. Esponjinha no pó, esponjinha no rosto e o pincel de tinta também foi passado no rosto, tão leve, tão sutil, tão “Xuxa com Monange”. E ela estava lá. Tão, tão… com a bolsinha já dentro da bolsa grande, o celular permanecia em mãos e os olhos verdes? Esses realçavam a beleza da jovem que em pé, no ônibus lotado, equilibrista, se empoderou.  Desceu do ônibus como uma princesa e roubou o coração do plebeu, mas não sabia disso. Até porque, não cantei a moça. Otário que fui.