Senhora segunda-FEIRA

Senhora segunda-FEIRA

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Reprodução internet

Por Auspicioso Acapela – Coletivo parceiro Contramão HUB

Segunda-feira, uma hora da tarde, e a primeira coisa que percebo é que o dia está quente demais, já que estamos no inverno.

Revoltada com o sol e o suor que começa a se formar em minha pele, subo ‘aquele’ morro para chegar até o ponto de ônibus. 

Eu estou cansada e meu dia ainda nem está na metade. Não estou no clima de ouvir música no ônibus e nem criar relacionamentos e romances platônicos em minha mente.

Fico chocada com a minha capacidade de imaginar e criar uma vida, uma história completa, com alguém que vejo por um milésimo de segundo. É sempre a mesma coisa. Mas hoje eu quero pegar meu ônibus, piscar e já estar no trabalho.

Finalmente o ônibus chegou. E é com alivio que percebo uma cadeira vazia na parte da frente. Ando o mais rápido que posso para que aquele lugar seja meu.

Há uma senhora e peço licença para eu me sentar junto a ela. Ela não me olha nos olhos, me olha na alma, depois escaneia todo meu corpo antes de se encolher para eu passar e finalmente sentar.

Vejo pessoas subindo no ônibus com uma certeza delas mesmas, como se já tivessem o futuro planejado, mais talvez tenham mesmo. Enquanto eu, olho para a janela do ônibus, sinto a brisa morna  e não tenho nem noção de como será o dia de hoje. 

Percebo que a velha ao meu lado se sente incomodada com algo. Ela mexe em sua bolsa com a máxima delicadeza que seus dedos enrugados e rachados conseguem. A todo momento, inquieta, a velha observa os arredores e procura por algo que não parece estar lá. Apoia-se em sua bengala e passa para o assento atrás do meu. Parece estar tão perdida quanto eu e percebo a ansiedade ao vê-la pelo reflexo do vidro a  minha frente, roendo as unhas desesperadamente.

O ônibus está sacudindo  mais que o normal e vejo como meu corpo se espalha a cada curva brusca. Talvez isso tenha incomodado a senhora, minha postura, meu tamanho. Mas ela demorou tanto tempo para se levantar. Será que estava com medo de me magoar ou me abandonar? Tudo é muito estranho. Nosso assento é o mais estofado e confortável da parte da frente. O banco de trás esvaziou pouco depois de eu me sentar ao seu lado, mas ela continuou comigo.  Será que ela pensou em mim, como penso nela agora? 

Ela não parece aquelas senhoras tradicionais. Não parece que cozinha para os netos algo proibido pelos pais. Ela nem ao menos parece ter netos. Tenho medo dela ser sozinha.

Sobre os amores. Este é um assunto que gostaria de tratar. Mas ela também não parece estar em clima para falar de romance. 

Meu avô por parte de mãe morreu primeiro que minha avó. Perder alguém que se escolhe pra levar a vida juntos não deve ser uma barreira simples de se enfrentar. Penso se esta senhora sente dor da perda ou se já viu tanta morte que ‘agora tanto faz’.

Ela não deu um pio. Isso me surpreende, pois os idosos costumam contar a vida inteira para quem está ao seu lado. Pelo menos, comigo sempre foi assim. Mas ela apenas murmurou alguma coisa ou outra, coisas que devem fazer sentido apenas na sua cabecinha branca parcialmente coberta por um lenço.

Temos tanto à esclarecer, tenho tantas perguntas. Já estamos tão íntimas, mesmo sabendo que ela não gosta de mim. Mas vejo que tudo vai acabar, pois ela ergue sua identidade e sagazmente se levanta com leveza de um alguém que não usa bengalas.

E foi ali na Avenida Amazonas com a rua Curitiba que ela me deixou sem nem dizer adeus.

Texto escrito: Rúbia Cely/ Texto editado:  Weterley Cruz

                                                                                                                                       

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