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Por Keven Souza

Criada em 2009, pelos diretores André Novais Oliveira, Gabriel Martins, Maurílio Martins e pelo produtor Thiago Macêdo Correia, a produtora mineira Filmes de Pástico já foi selecionada em mais de 200 festivais nacionais como o Festival de Cinema de Brasília e a Mostra de Cinema de Tiradentes, além dos internacionais como o Festival de Cinema de Locarno, Festival de Rotterdam, Indie Lisboa, Festival de Cartagena, Los Angeles Brazilian Film Festival e entre outros, ganhando mais de 50 prêmios. 

Fundadores da Filmes de Plástico

Como uma das séries de conteúdos dos 60 anos da Una, o Contramão traz, hoje, um bate-papo com Gabriel Martins, sócio-fundador da produtora, que tem 33 anos de idade e é Diretor, Cineasta, Roteirista e Produtor Cinematográfico, formado pelo pela instuição em 2010. Martins acredita na Una como um espaço que oferece o encontro entre pessoas que amam cinema e que queiram dialogar e aprender sobre o universo cinematográfico, além de tudo foi roteirista em 2014 do filme “Alemão” e possui produções em catálogo na plataforma de streaming Netflix, com o filme “Temporada”

Nessa entrevista, Gabriel relembra sua trajetória como graduando de Cinema que possuía o anseio de realizar projetos, ainda na faculdade, e que construiu experiências formidáveis através da Una para alavancar os seus sonhos no setor de produção audiovisual. Além disso, nos conta sobre sua carreira de cineasta ao longo dos anos, junto à produtora. 

Gabriel Martins da Filmes de Plástico e ex-aluno da Una

1) Como começou a sua carreira no Cinema? 

Considero que comecei minha carreira no cinema com meu primeiro filme “4 passos” que dirigi na Escola Livre de Cinema em 2005, antes de entrar na Una. Até hoje é significativo para mim, porque através dele errei muito e pude aprender com isso, sem falar na circunstância limitada para produzi-lo, que na época, possuía poucos recursos que consequentemente forçou a minha criatividade na execução. 

 

2) O que propiciou você a escolher estudar Cinema e por quê escolheu a Una? 

Sempre quis fazer Cinema, é um sonho desde pequeno pelo universo audiovisual e me encantava ver televisão e assistir making-of, bastidores de filmes, e nunca me passou pela cabeça cursar outra coisa. A escolha de estudar na Una aconteceu em 2006, quando tentei o vestibular, minha intenção era entrar para uma universidade pública e não particular, mas realizei o vestibular na Una para testar meus conhecimentos e como resultado consegui bolsa integral e tive a oportunidade de cursar o curso, foi interessante porque a princípio, naquele época, era a única faculdade que ofertava o curso só de Cinema. 

E foi através da faculdade que consegui fazer um estágio importante no laboratório, que tive possibilidade de ter contato com muitos equipamentos da área e aprender muito sobre eles. 

 

3) Quando era aluno, você participava de projetos voltados ao curso de Cinema, como por exemplo o Lumiar? O que agregaram na sua formação profissional?

Infelizmente, quando estudei não existia o Lumiar, mas criei o Cineclube, que funcionava depois das aulas e várias pessoas iam lá para ver filmes. Nessa época frequentava muitos festivais, e antes de entrar na Una, era crítico da área e escrevia sobre cinema em uma revista, tinha um network muito forte que consequentemente ajudava a levar muitas discussões importantes pro Cineclube. Digo que foi uma parte excepcional como estudante, porque agregou muito conhecimento para mim e para o projeto, nos encontros se formavam muitas equipes que eventualmente vinham a fazer filmes juntos. 

 

4) A ideia de criar a Filmes de Plástico, veio de onde? 

A Filmes de Plástico veio de encontro entre eu e Maurílio Martins na Una, nos conhecemos no primeiro dia de aula, fomos da mesma turma, e desde o início queríamos filmar e fazer algo que possibilitava assinarmos filmes que queríamos fazer em nosso bairro. Na época, morávamos na periferia de Contagem e havia muitas ideias, uma vontade grande de produzir juntos. 

É interessante dizer também que as nossas produções não tem uma mensagem específica, só fazem parte do universo e que a partir disso, buscamos filmar personagens que trazem empatia com o público e mostram realidades diferentes, provando que, em meio às adversidades, é possível, sim, fazer cinema.

 

5) Devido ao cenário imposto pela pandemia, a cidade (o mundo) sofreu interrupções nas produções. De que forma a Filmes de Plástico se adaptou a esse desafio? 

A Filmes de Plástico teve que se adaptar à pandemia, porque diversos projetos que esperávamos filmar por agora, foram congelados e nesse meio tempo utilizamos o período para desenvolver os roteiros e preparar melhor os projetos, e não tem sido fácil, tivemos algumas questões para nos mantermos de pé enquanto produtora e efetuar outros trabalhos, mas compreendemos que o mundo em si esteve em pandemia contra a Covid-19 e nós como produtora focamos em tarefas que poderiam ser feitas a distância. 

 

6)Existe algum impasse, por causa deste cenário, em fazer crescer ainda mais a produtora?

Com certeza! São dois anos que o mundo de certa forma se estagnou, e a produtora em si mediante o cenário, interrompeu as produções de caráter físicos como a gravação de filmes de longa-metragem e ficamos um pouco impossibilitados de se movimentar mais, mas de alguma forma a pausa não foi negativa, tivemos a oportunidade analisar onde a produtora poderia chegar futuramente, repensar mesmo sobre a nossa caminhada daqui pra frente.

 

7) O que podemos esperar sobre os próximos lançamentos?

Com ineditismo, por agora, temos dois filmes a serem lançados comercialmente, um deles se chama “A felicidade das coisas” dirigido por Thais fujinaga, que é um filme estreado no International Film Festival Rotterdam (IFFR) neste ano e que ano que vem pretendemos colocar em cartaz. O outro é o meu próximo longa-metragem que se chama “Marte Um”, que está em pós-produção e com lançamento, também, previsto para o primeiro semestre do ano que vem.

 

8) Como você entende a evolução do Gabriel que estudou Cinema na Una, para o Gabriel de hoje? 

Minha evolução é nítida, ao longo da trajetória aprendi e errei ao fazer filmes de longa ou curta-metragem, e também em produções de outra pessoas, acho que a experiência me trouxe mais serenidade, me ensinou a entender que às vezes é melhor ter menos urgência e obter mais calma no passo a passo, dando tempo ao tempo.

 

9) Qual conselho você daria aos graduandos do curso de Cinema e Audiovisual em relação às oportunidades de mostrarem o seu trabalho, em um festival como o Lumiar?

O conselho é que as pessoas se joguem nos projetos, criem novos, como o Lumiar foi criado, porque é a partir deles que muitos alunos podem sair da faculdade tendo sua própria produtora. É necessário pensar no seu caminho a seguir, filmar incansavelmente mesmo que você não tenha todos os recursos suficientes, colocar suas ideias em prática e cultivar o ato de fazer cinema é necessário. 

É importante aproveitar também todas as oportunidades de festivais universitários que vier a ter, absorver o máximo que puder desses ambientes para adquirir informações, conseguir ter contato com mais filmes brasileiros e conhecer pessoas que estão em um lugar mais próximo que você, em uma mesma fase da vida que estudam e tentam fazer filmes.

 

Edição: Daniela Reis

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Por Tales Ciel 

Todo grande cineasta tem que começar de algum lugar, e o audiovisual, como toda forma de arte, consegue aproveitar bastante a universidade para iniciar suas experimentações e produções. Guilherme Jardim é co-diretor e roteirista do curta-metragem “Dois”, junto com Vinícius Fockiss. Jardim também é aluno do Centro Universitário Una e integrante da agência Una 360.

O curta conta a história de Bernardo e Luix, que buscam aproximação afetiva durante o período de distanciamento social e, em meio ao caos, tentam descobrir outras formas de amar. Foi contemplado pela 6ª Edição do Prêmio BDMG Cultural, nomeado Melhor Filme pelo Júri do Festival Kinolab Tela Digital 2021, e mais. Guilherme Jardim conta um pouco sobre o seu processo de criação de um filme independente e as algumas das dificuldades de produção em meio ao isolamento social.

Em parceria com o Contramão, o Núcleo de Relações Públicas e Cultura traz o Palco 360: onde os estudantes que integram a equipe podem exibir suas produções e trabalhos. Guilherme concedeu uma entrevista sobre seu filme e nos contou sobre sua vida profissional e a produção de “Dois”.

Como é o processo de produção de um filme?

Esse processo de elaboração de filme, pra mim a princípio é um processo muito aberto. Porque, normalmente, pode ser uma frase que me motiva a escrever um roteiro, pode ser uma imagem que eu vi e que tive vontade de fazer uma história baseada nela, pode ser de alguma história que já escutei. Então depende do caso.

O filme “Dois”, por exemplo, que é o filme que eu faço roteiro e direção, surgiu a partir de uma frase que tinha anotado num tipo de bloco de notas do celular. E a partir dali, fui moldando essa história junto com o Vinicius Fox, que é meu amigo e fez esse filme junto comigo. E a gente chegou onde o “Dois” é hoje.

 

Quais as dificuldades que mais te testaram durante o projeto de “Dois”?

As maiores dificuldades que eu enfrentei durante o processo de criação do “Dois” foram, primeiro: o filme foi idealizado e desenvolvido durante a pandemia do coronavírus; o início da pandemia. Então a gente já tinha a primeira dificuldade de produção que seria fazer um filme em dupla à distância. Não podendo nos encontrar e tudo mais.

E aí, depois, também de direção à distância. Porque é um filme que envolve dois atores, o Bernardo Rocha e o Luis Gabriel, e que se fala muito sobre amor em meio ao caos. Então tinha também essa diferença entre a realidade que estávamos vivendo e o que queríamos propor junto ao filme.

Fazer esse direcionamento, tentar se aproximar dos atores e criar essa relação mais íntima mesmo à distância, acho que foi a maior dificuldade. Mas ao mesmo tempo, também, foi a maior alegria, assim, dentro do filme. Porque, eu acho que todo esse processo acabou fortalecendo a mensagem que a gente queria passar com o “Dois” e o queremos propor com essa história. Então, até no meio dessas dificuldades, a gente acabou conseguindo criar novos caminhos, para que as coisas fossem possíveis mesmo de acontecer.

E eu acho que se fazendo cinema universitário independente, precisa ter muita dessa força; de tipo, tem que querer um pouquinho mais do que o normal. Porque qualquer coisa desanima e, enfim, a gente precisa ter essa consistência e acreditar nas coisas que a gente faz.

 

Como é conseguir/ter o apoio da instituição?

É, ter a universidade como apoio no processo facilita alguns passos, principalmente quando a gente tá desenvolvendo a escrita do projeto. Nas aulas a gente tem as orientações dos professores, que têm experiências diversas. Então, isso acaba agregando muito nesse processo de criação e eu acho que é um facilitador também. Muitas vezes nós ficamos em dúvida, inseguros com o que estamos propondo e é bom ter esse apoio junto aos professores, de mostrar a sua ideia e compartilhar e ir construindo juntos.

Acho que um ótimo exemplo no processo do “Dois” foi a nossa relação com a Mariana Mól, que era professora na época da disciplina de P.I. de ficção, e a gente tinha um diálogo muito aberto, muito horizontal. Muitas vezes nós chegávamos com uma ideia e – uma ideia embrionária, que seja – e conversava, e acabavam surgindo novas ideias no meio disso.

Também tem muito haver com o se questionar, sabe? Acho que a universidade dá também essa oportunidade para sermos mais críticos com os trabalhos que fazemos. Colocam a gente pra pensar: ‘Que história é essa?’; ‘Onde que a gente quer chegar com essa história?’; ‘Por que que a gente tá contando ela?’. E ter argumentos plausíveis e profundos. Ao meu ver, acho que cada caso é um caso, e pro “Dois” foi muito importante se questionar várias coisas, acessar memórias afetivas e ter essa troca mesmo; essa relação coletiva e horizontal com todo mundo que estava, de alguma forma, desenvolvendo esse projeto.

Até teve um caso muito marcante, que eu amo, que foi quando estávamos tendo uma das orientações com a Mariana e ela lembrou de um livro da Ana Maria Martins – Como Se Fosse A Casa. Ela lembrou de um poema específico e falou: “Olha, pelo que vocês estão me falando, me lembrei disso aqui!”. E nós estávamos numa reunião ao vivo e ela meio que abriu o guarda roupa, pegou o livro na hora e leu pra gente. Depois mandou as fotos, para termos o acesso, também, digitalmente, caso fosse interessante usar. Enfim, [usar] como uma inspiração e acabou virando, sim, uma das coisas que usamos de referência. E acho que, também, essa construção afetiva, sabe? Do filme, junto aos professores; acaba criando um corpo que [vai] além do que a gente consegue imaginar e querer. É muito natural e muito bonito.

 

Se pudesse citar um dos seus projetos favoritos, qual seria?

O “Dois” foi um processo muito íntimo pra mim. Tanto pela troca com o Vinicius, de pensar nisso juntos, sabe? Tanto [quanto] fazer um filme para que eu acreditasse no meu potencial. Eu estava vindo, antes do Dois, de um processo que eu me desacreditava muito. Das coisas que eu poderia propor. Eu não me via muito nesse lugar, principalmente de roteiro; tinha muita dificuldade de me enxergar ali. Acho que o “Dois” veio como esse “clareamento das retinas”, “uma correção da miopia”, onde era tudo embaçado pra mim. Acabou ficando mais claro, mais amplo; consegui enxergar mais longe. Eu consegui criar possibilidades a partir do que eu tinha.

O “Dois” também vem muito junto com o meu entendimento com o cinema, que tipo de cinema eu quero fazer. E tem muito haver com um termo que eu gosto de usar, que se chama: auto-ficção. Que é o compartilhamento das coisas que eu vivi e que vivo, e ao mesmo tempo, das coisas que eu invento. Como eu consigo pegar da experiência e transformá-las, também, a partir das coisas que eu queria viver.

 

Qual dica você daria pra si mesmo e os outros?

A dica que eu daria, tanto pra mim e pra outras pessoas seria de ficar sempre atento. Eu acho que o cinema se dá muito ao olhar. Pra quem curte esse tipo de produção hereditária, uma produção que fala sobre nós (eu com um realizador, não-binário, lgbtqia+), é da minha vontade criar imagens pensado nesses corpos e como que eu posso representá-los. É mais sobre a representação do que a representatividade. E como que, a partir da minha vivência e das coisas que eu acredito, posso propor novos imaginários e fazer esse processo de abrir caminhos; abrir mentes.

Enfim, para quem gosta desse tipo de cinema, a dica é estar atento às suas memórias, as coisas que você está vivendo no agora. Eu acho que tem muita coisa que a vida acaba trazendo e a partir [disso], talvez, igual o “Dois”, uma frase que se escreve num bloco de notas, acabe virando filme.

 

Edição: Daniela Reis

Revisão: Keven Souza

 

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Por Italo Charles

Pela primeira vez Belo Horizonte recebe o festival Semana de Cinema Negro. O evento, que acontece de forma online e gratuita, promove uma perspectiva sobre memórias e registros pessoais e coletivos.

Com programação extensa, o festival é dividido em cinco mostras temáticas e traz aos espectadores 50 filmes nacionais e internacionais produzidos por pessoas negras brasileiras, africanas e diapóricas. 

Para além dos filmes exibidos, o festival  apresenta uma gama de debates, homenagens e oficinas. As obras podem ser  acessadas na plataforma de streaming todesplay.com.br, e os debates pelo canal do festival pelo Youtube.

A mostra principal comemora os 51 anos do FESPACO – Festival Panafricano de Cinema e Televisão de Ouagadougou, considerado o maior festival do continente africano, com curadoria da pesquisadora Janaína Oliveira. 

A idealizadora do festival, Layla Braz – formada em Cinema e Audiovisual -, aponta que durante a graduação sentiu muita falta da cinematografia negra e africana e diante da situação, em 2018, começou a projetar o festival, porém só em 2019 conseguiu apresentar o projeto para a Lei Municipal de Incentivo à Cultura.

“Eu sentia muita falta de explorar a cinematografia africana, na universidade eu não tive acesso a esses conteúdos, mas, principalmente, senti falta de não ter a divulgação aqui em Minas. Daí então, surgiu a ideia de criar um festival que levasse um olhar diferenciado para essa cinematografia”, comenta Layla Braz.

Ainda segundo Layla, o festival tem grande importância para a comunidade, uma vez que existe a falta de acesso a conteúdos cinematográficos relacionados à cultura negra. “Nós consumimos muitos filmes, estrangeiros e até brasileiros, mas não sob a ótica e construção negra, então o festival possibilitará ao público a aproximação com a cinematografia negra. 

O evento deixará como memória permanente um catálogo com cerca de 250 páginas com informações sobre a programação, textos inéditos e ensaios que completam os pensamentos acerca dos filmes. O catálogo tem como destaque memórias do FAN-BH – Festival de Arte Negra, um dos mais importantes eventos do segmento fora do continente africano.

Confira a programação (online e gratuita):

Instagram: https://www.instagram.com/semana.cinemanegrobh/

Site: www.semanadecinemanegro.com.br

 

A matéria foi produzida sob a supervisão da jornalista Daniela Reis

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Captura de tela do filme “Frankenstein” de 1931

* Por Filipe Bedendo 

“Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”. A afirmação do escritor italiano Ítalo Calvino mostra exatamente a amplitude da literatura clássica, composta por obras que superaram o tempo e ganharam espaço em um mundo cada dia mais ligado em telas e desconectado da leitura. Os livros abrem espaço para diversas discussões sobre a sociedade e a forma que nos posicionamos dentro dela. Mesmo após o fim do livro os leitores vão repensar sobre o que foi lido e trarão os questionamentos para a realidade.

Waldyr Imbroisi Rocha é pesquisador na área da literatura. Para ele os clássicos têm o poder de expansão do senso crítico, pois discutem questões humanas, sociais, culturais e políticas que atravessam as eras. “Os clássicos têm o poder de discutir, com profundidade e potência, questões que o espírito humano enfrenta desde que ele se reconhece enquanto tal”, afirma.

Além da formação do senso crítico, é importante destacar que muitas obras trazem significados implícitos, que podem ser compreendidos pelos olhares mais atentos. Segundo Waldyr, quando um autor escreve uma obra literária, há, além do texto em si, um volume imenso de informações que pode ser aprendido, quando se leva em consideração aspectos sociais, culturais e biográficos. Ele diz que essa, talvez, seja a tarefa mais interessante para os leitores. “Estamos livres para reinventar sentidos e propor novas leituras, afinal, o clássico não se esgota e tem suas formas de compreensão, também, condicionadas pelo tempo em que vivemos”, finaliza.

Em 1818, a escritora britânica Mary Shelley publicou o romance de horror gótico intitulado “Frankenstein ou o Prometeu Moderno”. Considerado o primeiro romance do gênero, a obra causou espanto na época em que foi lançado. A editora optou por esconder o nome da autora, pois considerava o tema muito hostil para ser debatido por uma mulher. Poucos anos depois, o livro foi republicado, e desta vez, levando o nome de Shelley. A história se tornou um grande

Prometeu moderno

Prometeu é um personagem da mitologia grega. De acordo com as obras do poeta Hesíodo, Prometeu e seu irmão Epimeteu receberam dos Deuses a tarefa de criar os homens e animais da terra. Epimeteu atribuiu dons variados aos animais, asas para alguns e garras para outros. Porém, quando chegou no homem, o criou a partir do barro, mas havia gastado todos os recursos na criação dos outros animais. Então, pediu ajuda de seu irmão. Prometeu roubou o fogo dos deuses e o deu aos homens. Este fato assegurou a superioridade dos homens sobre os animais. Como castigo a Prometeu, Zeus ordenou que Hefesto o acorrentasse no cume do monte Cáucaso, onde todos os dias uma águia dilacerava seu fígado que, regenerava-se todos os dias para que fosse torturado novamente.

símbolo da literatura mundial, e até hoje, gera debates sobre a sociedade.

Ao longo das páginas de “Frankenstein”, conhecemos a história do cientista Victor Frankenstein, que utiliza partes de cadáveres humanos para criar um novo ser vivo. Ao ver que a experiência não saiu como o planejado, fica horrorizado e abandona sua própria criação.

Sem ao menos ganhar um nome, a criatura não passa pelo processo de socialização e não aprende os padrões de convívio social. Durante anos, se esconde nas montanhas, onde vive sozinho e isolado da sociedade. Até que, um dia, encontra uma família que vive em um casebre na montanha. Ele passa a observar as pessoas e descobre um novo sentimento: o amor. Porém, quando decide se apresentar para as pessoas, a reação é a mesma: pânico.

Com histórico de rejeição e a solidão, a criatura acaba se tornando violenta. Desta forma começa a ter medo da raça humana, que o rejeita, e decide se vingar de seu criador, onde torna-se, involuntariamente, um ‘monstro’.

“Como posso te comover? Minhas súplicas não te farão olhar com simpatia para sua criatura, que implora tua bondade e compaixão? Crê-me, Frankenstein, eu era bom; minha alma ardia de amor e de humanidade; mas não estou sozinho, miseravelmente sozinho? Tu, meu criador, me odeias; que esperança posso ter junto aos teus semelhantes, que nada me devem? Eles me rejeitam e odeiam. As montanhas desertas e as tristes geleiras são meu refúgio. Saúdo estes céus abertos, pois são mais gentis comigo do que os teus semelhantes. Se a multidão dos humanos soubesse da minha existência, agiria como tu e se armaria para me destruir. Não hei de odiar, então, quem me abomina? Não vou render-me aos meus inimigos. Sou um desgraçado, e eles hão de compartilhar da minha desgraça. Ouve-me, Frankenstein. Acusas-me de assassinato e, no entanto, querias, de consciência satisfeita, destruir sua própria criatura”. 

– diálogo da criatura com seu criador em Frankenstein de Mary Shelley (1918)

Os ‘monstros’ da vida real

A palavra monstro vem do latim monstrum, um objeto ou ser de caráter sobrenatural que anuncia a vontade dos deuses. De acordo com o dicionário da língua portuguesa, monstro significa um ser disforme, fantástico e ameaçador, que pode ter várias formas e cujas origens remontam à mitologia. Qualquer ser ou coisa contrária à natureza; anomalia, deformidade, monstruosidade.

Apesar de ‘Frankenstein’ relatar o castigo dado ao médico por abandonar sua criação, o sociólogo Sílvio Carvalho observa na história a construção da violência humana através da exclusão das diferenças e a falta de comunicação. “Através do livro, podemos pensar sobre as raízes da violência e o papel da comunicação nas relações humanas. A criatura vai, ao longo do próprio histórico de vida, gradativamente se transformando no que chamamos de ‘monstro’ porque ele não teve uma série de elementos fundamentais para se constituir um ser humano”.

Mas como uma história do século passado se encaixa na realidade de hoje?

Ora, o abandono e a exclusão ainda podem ser vistos de forma explícita nos dias atuais. Sílvio acredita que o melhor paradoxo do livro com a realidade é a situação das favelas brasileiras e a forma que o estado trata a população negra periférica.

De acordo com relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Senado sobre o Assassinato de Jovens, feito em 2017, cerca de 23 mil jovens negros de 15 a 29 anos são assassinados. São 63 por dia. Além disso, um levantamento realizado pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen), em 2016, aponta que a maior parte da população carcerária brasileira é composta por pretos e pardos (65%).

A realidade que temos hoje é resultado de um longo processo histórico e cultura de racismo e exclusão de pessoas negras e periféricas. “O morro nunca foi compreendido, o morro foi uma exclusão social de um processo de construção histórica que leva a tudo aquilo”, explica.

Frankenstein, um filme de terror 

Com o grande sucesso dos livros, em 1931 a obra foi adaptado para o cinema pelo diretor James Whale, porém trouxe uma história diferente do que os leitores tinham visto anteriormente. No longa, a criatura, interpretada pelo ator Boris Karloff, torna-se violenta por conta do cérebro ‘problemático’ escolhido para ela, e não por conta da exclusão que havia sofrido, o que tira completamente o debate social por trás da história, tornando-a midiática.

O livro e o filme relatam a criatura a partir de sua aparência deformada, porém, a narrativa e a caracterização cinematográfica tornam esse fato mais evidente. No longa, a criação de Frankenstein é constantemente colocada com um vilão, construindo a imagem do “monstro”.

Um outro fato curioso é que há uma constante troca entre o nome do criador (Frankenstein) e da criatura, que nunca recebeu um nome. Porém, pensando na criatura como um “filho” de Victor Frankenstein, podemos considerar a possibilidade de que a rejeitada criação de Victor receba, ao menos, seu sobrenome. E, desta forma, o ‘monstro’ ficou conhecido como Frankenstein.

O longa foi um marco na indústria cinematográfica do terror e o personagem se tornou um ícone da cultura pop, sempre associado ao mal. Ao longo do tempo, muitos outros filmes surgiram contando a história escrita por Mary Shelley, porém, poucos trouxeram o humano por trás da criatura.

 

*A matéria foi produzida sob a supervisão da jornalista Daniela Reis.

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Filme Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos. Foto: Divulgação.

Entrevista com Renée Nader Messora e João Salaviza, diretores do longa-metragem “Chuva é cantoria na aldeia dos mortos”

Por Iakima Delamare*

Sobre cinema na aldeia

Em cartaz em Belo Horizonte, no cinema Belas Artes, na sessão das 16 horas, o longa-metragem dirigido por João Salaviza e Renée Nader Messora, “Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos”, mergulha na ancestralidade e fala da relação dos povos tradicionais com a morte e o luto a partir do contato com uma aldeia indígena localizada em Pedra Branca, interior do Brasil.

RENÉE: Meu trabalho na aldeia Pedra Branca começou com uma experiência muito parecida ao VNA. Primeiro eu fui pra lá fazer um documentário sobre essa liderança Krahô, o Pohi, que já faleceu. Fizeram pra ele uma grande Festa de Fim de Luto (Pàrcahàc) que é a festa que a gente vê no filme. Foi o primeiro contato que eu tive e quando eu voltei para São Paulo eu só sabia que eu queria voltar pra lá. E eu tinha acabado de conhecer a experiência do VNA, na verdade. Eu venho do cinema, eu era assistente de direção, fazia publicidade e não tinha nada a ver com este universo indígena.

Então eu escrevi um projeto e fui lá fazer uma oficina com várias aldeias Krahô e a Pedra Branca era uma dessas aldeias. Depois eu voltei à convite da própria aldeia para desenvolver outras oficinas até que no fim eu escrevi um projeto grande, passando um ano na aldeia porque aí acabou se formando um grupo de jovens realizadores, cinegrafistas. A maior preocupação deles era o registro etnográfico, desse saber que de alguma forma podia estar se perdendo.

Só quando eu voltei para este projeto mais longo de um ano a gente começou a trabalhar outras coisas e vieram as ideias de ficção. O espectro de cinema se abriu. Eles começaram a perceber também outras formas de usar aquela ferramenta. Eles fizeram um filme que a gente descobriu que acabou circulando entre várias terras indígenas, que era um filme que chamava Tudo Por Um Litro. Eles começaram a entender um pouco mais esses jogos da ficção e como podiam usar esta ferramenta e já em 2015 a gente já tava começando a preparar o Chuva a energia tava quase chegando na aldeia e a gente começou a filmar.

Acho que todas estas experiências foram criando esse terreno sobre o qual a gente conseguiu construir a narrativa do Chuva. Tem momentos em que o filme tem uma mise-en-scène cinematográfica num ponto clássico, quase um cinema clássico. Aquela sequência da fogueira onde tem plano, contra plano, conversa, jogo de olhar, aquilo foi super trabalhado, nada ali é por acaso. Mas depois se for ver a sequência da festa, aquilo lá foi a gente se adaptando à realidade que tava ali na nossa frente. A gente vai conseguir transformar aquela realidade em material fílmico né? Como transformar aquilo em algo que jogue a favor da nossa narrativa? Porque a gente não ia produzir uma festa. A gente jamais pediria pra que eles fingissem que estão chorando ou cantando nessa festa.

Foram duas Festas de Fim de Luto que aconteceram durante estes nove meses que a gente filmou. Elas aconteceram em épocas totalmente diferentes do ano e isto no cerrado faz uma diferença brutal na iluminação. Na seca é uma coisa e na chuva é outra. Então aí também entra o cinema né, o cinema que vai dar conta de fazer aquelas duas festas parecerem a mesma. Que sequer era do pai do Ihjãc.

Então este registro vai se adaptando às necessidades e às possibilidades do filme. A gente não tentava ir contra a maré, a gente tentava ver como era o fluxo das coisas e ele (filme) tenta acompanhar esse fluxo. Por isto que a gente demorou tanto tempo pra filmar. O Ihjãc mesmo, muitas dos dias ele tinha coisa para fazer. Tinha que ir na roça, tinha que pegar palha e o filme vinha sempre depois. O filme não era prioridade, nem do Ihjãc, nem da aldeia, de nenhuma das personagens, talvez nem era nosso (risos)

JOÃO: alguns dias era mas muitas vezes não. Tinha tanta coisa rolando ali né?

Sobre a complexa categoria “cinema indígena”

JOÃO: sobre essa questão do “cinema indígena”. A gente conversou sobre isso, mas a gente não consegue muito bem localizar o filme…

RENÉE: A ideia de “cinema indígena” eu acho meio complexa. Eu não sei se meu filme pode ser considerado um cinema indígena. Eu acho que não. Eu acho que o cinema Indígena tem que trazer outras formas de fazer cinema e não a mesma. Nosso filme quebra com várias ideias do cinema clássico. Mas eu estudei cinema em escola tradicional ocidental e eu não consigo sair muito disso. Então eu acho que o cinema indígena, talvez, deveria um pouco romper com esta forma de olhar e trazer outras. Como já tem. Eu tenho visto alguns filmes que não tem essas referências e esta forma de olhar para o mundo e pras coisas que a gente tem.

JOÃO: a própria construção da narrativa do nosso filme mesmo que tenha algumas bifurcações — como aquela cavalgada de um minuto — mesmo assim é ancorado numa tradição narrativa clássica, greco latina. A gente não descoloniza o olhar por decreto, é impossível. Por mais que a gente tente combater estes automatismos intelectuais e emocionais, não sai assim de uma hora pra outra. Agora, é muito interessante esta produção indígena que está vindo aí, realmente feita por indígenas, sobre temáticas indígenas Neles você raramente encontra uma construção narrativa como essa.

Sobre traduzir o inacessível

JOÃO: Talvez a gente esteja nesse lugar de pensar como a gente consegue traduzir com imagens um universo que nos é totalmente inacessível. O universo dos espíritos a gente consegue entender num plano conceptual e consegue imaginar algumas coisas a partir dos relatos deles e você dá alguma forma. A gente pensa no cinema como uma ferramenta para tentar fazer essa tradução que a antropologia tenta por outro caminho. Mas as vezes acho que é perigoso cair numa espécie de ilustração que se sobreponha ao imaginário Outro, o imaginário de onde essas histórias existem.

A gente pensa muito no nosso filme. Tem um risco de cair na ilustração, na romantização. É um terreno cheio de riscos e possíveis contradições. A gente fica muito feliz de ver a sequência do início do filme e o Ropoxet também fala: é desse jeito mesmo, a gente encontra o Mekarõ é assim mesmo”. Então a gente pensou em como filmar essa sequência de uma forma mais ou menos naturalista. Que ela é. O menino chega, fala pra água. Não vê o pai, a gente não sabe se é a câmera que não vê o espírito né? A nossa câmera não é pajé. Então a gente não vê o espírito. Talvez o Ijhãc tá vendo ou talvez não tá, mas a câmera não vê.

Mas a gente tentou filmar esse relato de uma forma mais ou menos naturalista, apesar daquela luz. Porque a forma como ele nos contou desses encontros, o relato não é diferente de “eu tava andando no mato e encontrei o vizinho caçando” ou “eu tava andando no mato e encontrei o espírito do meu pai. Não é muito diferente da forma como eles contam porque de fato o mundo espiritual e o mundo material estão ali diluídos. Na Europa muitas vezes nos perguntam: “essa sequência mais fantástica ou mais onírica” e a gente fala “não, não tem nada de onírico” até porque o Krahô não faz essa divisão. Não tem subconsciente pro Krahô.

RENÉE: Se aquela sequência talvez fosse filmada com uma luz mais naturalista, ninguém falaria isso. Na verdade isso vem de uma incapacidade nossa de filmar naquelas condições, no meio do mato, para a equipe era impossível, então foi meio que uma solução que o filme encontrou.

Elenco e realizadores do filme “Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos”

Sobre o equilíbrio entre narrativa de sensibilidade subjetiva e comentário político

RENÉE: a nossa grande preocupação, nem era uma preocupação, era uma vontade com esse filme era tentar filmar esta subjetividade desse menino Krahô, que são muitos meninos Krahô que a gente convivia durante tanto tempo e a nossa grande vontade era dar conta disso.

JOÃO: e é esse menino, não é um adolescente genérico

RENÉE: e esse menino, essa história, que queria contar. Porque é claro, a gente também pensa que nessas outras narrativas é como se o índio não existisse antes do branco. Ele só existe a partir do momento em que tem um branco querendo roubar a terra dele ou olhando para ele e falando: “olha só que bonito, que exótico, olha essa festa que ele faz, olha como ele se veste, olha essa pintura corporal do índio”. E na nossa cabeça esse filme não queria dar conta disso. A gente queria contar a história de Ijhãc, desse Krahô que é adolescente hoje num Brasil tão hostil à existência dele.

É claro que é impossível você falar de um índio hoje e não esbarrar nessas outras questões. É claro que construímos ideias, e muitas coisas dali estão porque escolhemos que estivessem, como aquela parada do agronegócio ali no meio da cidade, é claro que eu escolhi botar aquele plano ali, eu achei necessário e eu escolhi botar o hino nacional também naquela sequência. Mas esse nunca era o foco do filme, e também mesmo que não escolhêssemos fazer isso, essas coisas estão sutilmente na cidade. Essa agressividade ela existe, tá ali o tempo todo. Talvez se eu não tivesse pontuado algumas dessas coisas essa ideia ia passar um pouco mais despercebido. Mas isso existe, isso tá lá.

Sobre Kôtô e a possibilidade de um filme sobre as mulheres indígenas

JOÃO: a Kotô cresceu muito durante a filmagem.

RENÉE: a Kotô na verdade, é uma menina muito tímida. Pra ela falar pra gente, demorou muito. As mulheres Krahô, são muito tímidas, é muito difícil você aceder ao universo feminino e eu acho que isso é uma especificidade de vários povos, não é só o Krahô.

Eu sempre tinha essa vontade de ter uma protagonista feminina. Porque é realmente um universo, mas é um universo quase secreto. Ainda mais para quem não fala a língua. Mas conforme a gente foi filmando a Kotô ela foi se mostrando e as vezes ela continuava tímida e fechada mas ela entendia perfeitamente a nossa proposta para as cenas e ela conseguia inclusive contribuir com as ideias dela para o desenrolar das sequências. Durante o processo ela foi ganhando cada vez mais força e agora eu olho para o filme e a Kotô, para mim, tem uma coisa muito especial.

Tenho muita, muita vontade de trabalhar com as mulheres inclusive quando eu comecei a fazer as oficinas umas das condições era que fosse metade metade as turmas, metade meninos e metade meninas. E quando comecei essa molecada tinha 13, 14 anos, só que com o passar do tempo elas vão engravidando porque lá o pessoal engravida muito cedo, então elas viram mães e acabam ficando naquela rotina da maternidade.

Tem uma coisa ali do universo feminino que é essa realidade de que elas são mães cedo né, então fica mais difícil dar continuidade aos trabalhos. Mas sim, tenho muita vontade de conseguir levar a cabo um projeto só de meninas. A gente continua trabalhando na aldeia, continua pensando em coisas para fazer com eles.

JOÃO: Sobre a cena delas na água, ela reflete muito do que a Renée disse, da Kotô ser bem tímida. No começo quando a gente decidiu filmar com Ihjãc a gente tinha esta ideia desta macroestrutura do filme mais ou menos inspirada neste outro menino que passou por um processo semelhante, fugiu para a cidade durante um ano e acabou voltando. A gente tinha mais ou menos estas âncoras para poder ir filmando e tentar introduzir outras coisas no processo.

Quando começamos a filmar com Kotô, eu acho que uma das primeiras cenas que nós filmamos, a gente filmou mais ou menos de uma forma cronológica é a cena do Ihjãc contando para Kotô que tá virando pagé. Aquela cena dos dois deitados na casa que eu acho que é uma cena super bonita, de uma intimidade total. Mas a gente pensou que ela continuava sendo essa figura da mulher que apoia o homem, escuta o problema do homem. E que a Kotô não pode ser só isso no filme.

RENÉE: E ela não é. Ela é o oposto. Ela é quase mais um problema para ele. Acho que ela é a força do Ihjãc. Ela é aquilo que faz ele pra frente.

JOÃO: Mas essa cena da água é muito interessante porque a gente propôs ela escolheu pessoas com quem ela queria filmar. Claro que a gente ia ter também a proposta de ficção. Na água que tem todo o lado lúdico e tem as crianças brincando, tem uma coisa cotidiana aqui muito mais interessante do que aquele clichê do cinema do que duas pessoas em cima de um prédio olhando a cidade e conversando contemplativamente sobre seus problemas existenciais. Ali não, ali há um fluxo, tão banhando, tão brincando e tão conversando e tem gente ali perto.

Sobre a língua Krahô

JOÃO: o que a gente saca hoje da língua Krahô nos permite entender dos temas das conversas. A gente consegue ter falas muito simples como “vem cá”, “vamos comer”, “cadê você?”. Mas a gente não consegue ter uma conversa. Mas tinha uma coisa assim nossa, de entender uma verdade da cena quase como se a língua fosse gesto também que vem de ter uma intimidade com eles.

RENÉE: não importa saber exatamente o que elas estão falando porquea essência da cena tá em outros lugares que tem muito a ver com a própria forma deles de se expressar. Os Krahô se expressam de outras formas que não é só o verbal.

Essa relação de poder que é estabelecida quando você aponta a câmara para alguém, quando você não entende o que a pessoa está falando ela é quebrada então a gente também fica numa posição um tanto frágil no momento em que a gente não entendia exatamente o que eles diziam. A gente também tinha que confiar neles.

É quase como se eles dirigissem a gente. Era uma coisa de ida e vinda porque a gente também tinha que confiar demais neles, eles confiavam na gente mas nós tínhamos que confiar muito neles.

E foi muito bonito também que por conta disso, este ato de dirigir o filme, que geralmente é um ato de um querer um diretor,ele é o grande senhor do filme. A vontade dele é tem que ser é. Isso daí foi totalmente de outras formas também, dessa diretamente, em relação ao material fílmico, mas assim do que a gente conseguiu captar a gente não tinha o controle de tudo a começar pela fala deles , isso foi muito bom, eu acho que foi muito bom.

JOÃO: fazê-los donos da sua própria fala mesmo que a gente não os entenda.

Sobre os diálogos

JOÃO: Não queríamos que fosse um processo de entrevista que tem esta espécie de ping pong dialético que é: “eu quero que você fale sobre isso e você responde”. “Onde você mora? Quem é sua esposa?”. E você pergunta até chegar nas respostas. Então a entrevista é um dispositivo, é claro, tem coisas incríveis mas existe um jogo de poder e para nós era mais interessante que a gente sugerisse temas.

Essa fala do Ropoxêt na cena da fogueira quando ele fala sobre a ambiguidade do pajé, o plano dele, que é um monólogo de dois minutos falando sobre o pajé, este plano não existia na montagem. A gente terminou a sequência no Ihjãc. Quando a gente finalmente fez a tradução, meu pai assistiu e disse “eu não entendo qual é o problema desse menino em virar pajé. Pajé “é uma figura incrível, pajé é um velho sábio que usa cachimbo, é uma coisa maravilhosa…”

RENÉE: isso é uma idealização nossa. O pajé é uma figura super ambígua, problemática. Tem gente que odeia, tem gente que atravessa a rua quando vê um pajé.

JOÃO: mas é também esta coisa, como que a gente pensa um procedimento de cinema para introduzir uma coisa que é didática entre nós. A gente está fazendo uma tradução…

RENÉE: queremos que se entenda.

JOÃO: queremos tornar as coisas mais ambivalentes possíveis, então tomara que nosso filme não contribua para reproduzir este estereotipo do pajé que é uma figura iluminada, é muito mais interessante mais complexificado assim.

JOÃO: Quando filmamos Ropoxêt falando sobre o pajé o procedimento cinematográfico era: “Ropoxêt você tá aqui, tem o Ihjãc, tem Kotô, tem figuras mais jovens, fala para eles, eles sabem a figura do pajé, mas fala para eles sobre isso e não pra nós”.

Sobre a cosmologia e o encontro entre ficção e documentário

JOÃO: O mito para eles não é, é a história do antigo mas não é uma mentira. Não é uma lenda, o mito é realmente o sol, a lua…

RENÉE: É como ele falou ontem…hoje o bicho não fala mas…de começo todo o bicho falava…

RENÉE: isso daí…passado…ele reconhece como passado, não reconhece como um tempo mítico

JOÃO: Ele sabe que foi há muito tempo.. mas existiu…

RENÉE: talvez o tataravô dele pegou esse momento e não é um outro tempo, é um tempo anterior,

KIMA: ou nem tanto, né? A arara fala com ele no filme.

JOÃO: Exato, a arara fala.

KIMA: acho que isso é interessante, vocês colocam tudo no mesmo nível. Todos os acontecimentos, ces aterram eles.

RENÉE: era uma coisa muito importante para a gente que esse mundo fosse contíguo. Ele não é outro, é o mesmo, o mesmo plano.

JOÃO: isso se vê na aldeia todo tempo.

RENÉE: Sonho não é só sonho. Seu Karõ sai do corpo e faz tudo aquilo.

KIMA: Karõ é o que exatamente?

JOÃO: Karõ é o espírito, um duplo que tá por aí. Quando você tá doente, é também o espírito que saiu do seu corpo e o trabalho do pajé é trazer ele de volta. As vezes ele consegue, outras vezes não dá conta. O pajé vai realmente no mato, conversa com o espírito, volta para a aldeia, conta como foi este encontro. Eles contam histórias de porrada, que bateu, que puxou o braço e falou que não ia voltar…

RENÉE: eles apanham, é perigosíssimo!

JOÃO: e o Mekarõ é o seu duplo, a sua sombra. a imagem numa foto é o Karõ, o reflexo na água é o Karõ… O espírito é o Karõ. É um duplo, um espectro. Esta palavra é tão complexa que a gente decidiu não traduzir para o filme.

RENÉE: mas essa palavra não é só o espírito, ela é o desdobramento. A palavra no decorrer do filme vai ganhando sentido.

RENÉE: é tão difícil traduzir um conceito que é tão amplo, quer dizer, não era interessante traduzir, só perdia, reduzindo isso a palavra escrita.

JOÃO: a palavra foi uma decisão super difícil de “será que a gente assume que é o espírito e pelo menos a gente dá conta de um dos sentidos da palavra?” ou a gente corre o risco de ela não ser absolutamente nada?

RENÉE: mas eu nunca achei isso…

*(Entrevista editada pelo jornalista Felipe Bueno).