Tags Posts tagged with "Justiça"

Justiça

0 3723

Por Bianca Morais 

Há seis anos, o termo Fake News ainda não era muito usado e nem tinha a visibilidade que tem atualmente. As conhecidas “notícias falsas” foram responsáveis por manipular eleições, destruir reputações e até vidas. Acontece que as fake news sempre estiveram presentes em nossa sociedade, porém com o avanço da internet ela passou a alcançar um número muito maior de pessoas.

Em 2014, um caso teve grande repercussão no Brasil e ficou conhecido como um dos primeiros episódios da nossa história em que uma postagem falsa na internet acabou com uma vida. O linchamento de Fabiane Maria de Jesus, 33 anos, aconteceu no dia 3 de maio daquele ano, a mulher foi confudida com uma raptora de crianças e, por isso, brutalmente assassinada por dezenas de pessoas que resolveram fazer justiça com as próprias mãos. 

Conheça o caso

Fabiane era casada e mãe de duas filhas, dona de casa e muito religiosa. Naquele sábado, dia 3 de maio, ela levantou pela manhã e foi até a igreja que frequentava no bairro Matozinhos, na periferia da cidade de Guarujá (SP), buscar a bíblia que tinha esquecido. A mulher também passou no trabalho do marido. Depois dali ela andou até o mercado, comprou bananas e seguiu seu caminho.

Não se sabe ao certo como tudo teve início, mas segundo relatos a mulher ofereceu uma banana para uma criança na rua, ao ver a cena a população ao redor a confundiu com a “bruxa do Guarujá” e avisou um rapaz da biqueira, que já chegou agredindo Fabiane. Em pouco tempo, o linchamento começou a tomar proporções gigantescas, já não era possível mais saber a quantidade de pessoas que assistiam enquanto a mãe de família era arrastada, chutada e espancada. Homens, mulheres e crianças assistiam ao massacre.

A Bruxa do Guarujá

Dias antes do linchamento, uma publicação em uma página no Facebook, com cerca de 56 mil curtidas, chamada Guarujá Alerta, dizia que uma mulher estava raptando crianças para realizar magia negra. Na postagem ainda havia um retrato falado e a foto de uma loira, seguidos da frase: “se é boato ou não devemos ficar alertas”. Nenhuma das mulheres mostradas se pareciam com Fabiane, mesmo assim ela foi confundida e atacada. 

A criminosa mencionada no Guarujá Alerta nem sequer existia, posteriormente a polícia descobriu que não havia nenhuma denúncia recente de sequestro de crianças em Guarujá, e quanto a foto do auto-retrato, se tratava de um crime ocorrido no Rio de Janeiro, dois anos antes.

Uma semana antes de sua morte, Fabiane, que tinha os cabelos compridos e pretos, teria cortado na altura dos ombros e tingido de ruivo, como não gostou do resultado, na noite anterior ao linchamento os descoloriu de modo a voltar a cor preta. Os cabelos descoloridos fizeram com que ele remetesse ao loiro, assim como o da foto da mulher que circulava no facebook.

A pena de morte à Fabiane

Durante quase três horas, Fabiane Maria de Jesus sofreu diversos tipos de agressões. O povo ao redor nada fez para ajudá-la e muitos ainda gravaram com seus celulares todas as atrocidades cometidas. Nenhum daqueles moradores se preocupou em checar a veracidade da notícia ou confirmar se aquela espancada na frente deles era realmente a das fotos. A única preocupação deles ali era condenar uma pessoa que eles acreditavam ser a culpada de um crime que nunca existiu.

Enquanto era espancada a socos, chutes, pauladas e até uma bicicleta atravessada sobre sua cabeça, a multidão em sua volta viu a bíblia que ela carregava em suas mãos e diziam ser um livro de magia negra e os santinhos dentro dela, fotos das crianças que ela sequestrou.

Uma viatura da polícia e uma equipe de resgate tentaram chegar ao local, porém foram impedidos pelos populares que exigiam a presença da imprensa para registrar a captura da criminosa. A TV Record foi até o local e fez a gravação.

Fabiane chegou a receber atendimento médico, mas morreu na manhã de segunda-feira. As lesões foram tão graves que os médicos disseram que caso ela sobrevivesse iria apresentar sequelas para o resto da vida.

Julgamento

As gravações feitas pelos celulares e divulgadas na internet ajudaram a identificar os culpados. Cinco homens foram condenados a penas de até 40 anos, entre eles: 

Lucas Rogério Fabrício, passou a bicicleta por cima dela;

Carlos Alex Oliveira de Jesus, bateu a cabeça dela contra o chão várias vezes;

Abel Vieira Batalha Junior, proferiu diversos golpes a cabeça da mulher;

Jair Batista dos Santos, jogou Fabiane da passarela;

 

Valmir Dias Barbosa, aplicou pancadas com um pedaço grosso de madeira na cabeça da vítima. Esse último pegou menos anos de prisão por ter confessado o crime.

Todos os acusados alegam que não tiveram a intenção de matar e agiram pela revolta ao saberem que a mulher  sequestrava crianças para praticar magia negra. 

O Brasil é um dos países onde mais acontecem linchamentos no mundo, o perfil dos linchadores é sempre o mesmo, pobres, habitantes de comunidades carentes e periféricas, onde o Estado não se faz presente. O boato que circulava entre os cidadãos daquela comunidade era que a sequestradora pegava crianças para arrancar-lhes o coração em rituais de magia negra. O medo tomou conta daqueles moradores, as mães temiam os filhos brincarem na rua, afinal, não tinha quem os proteger a não ser eles mesmos.

Com certeza hoje, sete anos após a morte de Fabiane, muitos indivíduos daquela multidão furiosa guardam remorsos e uma consciência pesada. Agiram de forma injusta, julgaram e mataram uma inocente. O ser humano erra e a justiça é falha, pena de morte deve ser muito bem aplicada, pois como no caso de Fabiane, o julgamento foi errado.

Moradores de rosa Leão, da ocupação Izidora, na região norte da cidade de Belo Horizonte, se concentram para marcha. Ao todo, mil moradores atravessaram a cidade até o Tribunal de Justiça de Minas Gerais para acompanhar o julgamento que definiu o futuro da ocupação. Fotografia: Lucas D'Ambrosio

Após seis horas e quase 25 quilômetros percorridos em marcha, cerca de mil moradores da ocupação urbana Izidora atravessaram a cidade de Belo Horizonte em busca de justiça. A longa e exaustiva caminhada, na quarta-feira, 28, teve início na região norte da cidade, até chegar ao centro da capital. O destino: Palácio da Justiça, sede do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG).

Os moradores realizaram a marcha em forma de protesto e foram até as portas do tribunal, localizado na avenida Afonso Pena, acompanhar o julgamento que iria decidir os rumos jurídicos da ocupação. Iniciado às 13h30, o Pleno do TJMG, composto por 19 desembargadores, julgou o Mandado de Segurança impetrado pela defesa da Izidora, que tentava garantir a segurança, por meio de medidas conciliatórias, o despejo das famílias que moram na região.

Moradores da ocupação Izidora atravessam mata e estrada de terra para alcançarem o asfalto que leva até a Avenida Cristiano Machado. Fotografia: Lucas D'Ambrosio
Moradores da ocupação Izidora atravessam mata e estrada de terra que levam até o asfalto que dá acesso à avenida Cristiano Machado. Fotografia: Lucas D’Ambrosio

 

A marcha atravessou a cidade através da Avenida Cristiano Machado. Fotografia: Lucas D'Ambrosio
A marcha atravessou a cidade pela avenida Cristiano Machado, cruzando bairros da capital, Belo Horizonte, em direção ao centro. Fotografia: Lucas D’Ambrosio

 

As pessoas ali presentes, das crianças de colo até os mais idosos, estavam concentradas na porta do tribunal e se aglomeram em volta da escadaria. Correntes de oração e rostos apreensivos transformaram o semblante dos que estavam presentes, aguardando o resultado.

 

Cerca de 30 mil pessoas moram atualmente nas ocupações Rosa Leão, Vitória e Esperança, que integram a ocupação Izidora. Nas 8 mil famílias, cerca de 7 mil crianças também moram na região. Fotografia: Lucas D'Ambrosio
30 mil pessoas moram atualmente nas ocupações Rosa Leão, Vitória e Esperança, que integram a ocupação Izidora. Nas 8 mil famílias, cerca de 7 mil crianças também moram na região. Fotografia: Lucas D’Ambrosio

 

 

Enquanto aguardavam o anúncio do julgamento, moradores se posicionaram nas escadarias do Palácio da Justiça, sede do TJMG, na Avenida Afonso Pena, região central de Blo Horizonte. Fotografia: Lucas D'Ambrosio
Enquanto aguardavam o anúncio do julgamento, moradores se posicionaram nas escadarias do Palácio da Justiça, sede do TJMG, na Avenida Afonso Pena, região central de Belo Horizonte. Fotografia: Lucas D’Ambrosio

 

Depois de três horas de julgamento, por 18 votos a 1, ficou decidido o não acolhimento do mérito do referido mandado, autorizando a reintegração da posse. O anúncio da decisão foi realizado por meio de uma comissão de advogados que estava presente no julgamento e eram responsáveis pela defesa e representação dos interesses da ocupação.

Comovidos, os advogados se pronunciaram para os presentes, sobre futuros planos para tentar a reversão da decisão do TJMG no Superior Tribunal de Justiça (STJ), em Brasília. O recurso pretende suspender a ordem de reintegração da posse e do despejo das famílias, que pode acontecer a qualquer momento, após a publicação do recente julgamento.

 

Frei Gilvanderson Luís Moreira, ao lado da comissão de advogados que representou a ocupação no processo do TJMG, anuncia a decisão que autoriza a reintegração de posse da área ocupada pelas forças policiais. Fotografia: Lucas D'Ambrosio
Frei Gilvander Moreira, ao lado de advogados que representaram a ocupação no processo do TJMG, anuncia a decisão que autorizou a reintegração de posse da área ocupada pelas forças policiais. Fotografia: Lucas D’Ambrosio


Revolta instaurada

Durante todo o dia, os gritos entoados eram um só: direito à moradia. Nos últimos anos, a região em que está localizada a ocupação Izidora é objeto de disputa e especulação imobiliária envolvendo diferentes partes: Prefeitura de Belo Horizonte, Governo do Estado de Minas Gerais, Governo Federal, a empresa Granja Werneck SA, a construtora Direcional e os 30 mil moradores da região.

 

São cinco mil casas, gente! Aonde nós vamos enfiar toda essa gente? Maria da Silva, moradora da Izidora. "Eu vim a pé, carregando uma faixa! Nós não vamos aceitar!”. Fotografia: Lucas D'Ambrosio
“São cinco mil casas, gente! Aonde nós vamos enfiar toda essa gente?” Maria da Silva, moradora da Izidora.  Fotografia: Lucas D’Ambrosio

 

A Izidora – ocupação formada por outras três: Rosa Leão, Vitória e Conquista – está localizada na região norte de Belo Horizonte e abriga 30 mil pessoas distribuídas em 8 mil famílias. Uma característica que é defendida pelos moradores é a existência de casas construídas de alvenaria. Eles defendem que essas construções não sejam destruídas, pelo contrário, sejam aproveitadas em um plano de urbanização da região.

L.C, 17, é estudante e moradora da Rosa Leão, uma das três ocupações pertencentes à Izidora. Sob o sol quente, enquanto percorria a Avenida Cristiano Machado, L.C demonstrou os motivos que a levaram marchar até o centro da cidade, “Estou aqui lutando por uma moradia digna. Todo ser humano tem esse direito. É uma dignidade do ser humano. A maioria das pessoas acham que estamos parando a cidade por vandalismo, mas estamos fazendo isso por um bem e por um direito de todos nós”, afirmou a estudante que é moradora da Izidora.

Fotografia: Lucas D'Ambrosio
Fotografia: Lucas D’Ambrosio

 

Um dos representantes da ocupação, Frei Gilvander Moreira lamentou a decisão proferida pelo colegiado do TJMG, “Parece que querem fomentar uma guerra civil em Belo Horizonte. As ocupações estão em processo de consolidação e essa decisão do tribunal (TJMG) foi um absurdo. São 30 mil pessoas morando nas ocupações da Izidoro. Tem crianças, idosos, gente de todas as idades. Se a polícia for lá para fazer o despejo, essas pessoas não vão desistir de brigar pela moradia delas”, afirmou Moreira em coletiva de imprensa.

Déficit Habitacional

O conflito latifundiário e urbano da ocupação Izidora é considerado o maior da América Latina. Desde 2011, cerca de oito mil famílias ocupam a região do norte da cidade de Belo Horizonte, conhecida como “Mata do Isidoro”. Composta por três ocupações: Vitória, Conquista e Rosa Leão, a Izidora se tornou referência na luta pelo direito à moradia no Brasil.

 

As casas de alvenaria, construídas desde 2011, chamam a atenção na ocupação Rosa Leão, na Izidora. Cerca de 5 mil casas estão construídas em toda a ocupação, o que não justificaria a derrubada delas, de acordo com os moradores. Fotografia: Lucas D'Ambrosio.
As casas de alvenaria, construídas desde 2011, chamam a atenção na ocupação Rosa Leão, na Izidora. Cerca de 5 mil casas estão construídas em toda a ocupação. Os moradores acreditam que a derrubada delas para a construção de casas populares, seria injustificada. Fotografia: Lucas D’Ambrosio.

 

Garantido constitucionalmente, esse direito visa assegurar a moradia justa, digna e necessária para os brasileiros. De acordo com informações da Fundação Clóvis Salgado, nos anos de 2013 e 2014, o déficit habitacional por situação do domicílio e déficit habitacional relativo aos domicílios particulares permanentes e improvisados, da região metropolitana de Belo Horizonte, foi de 140.707 (2013) e 155.393 (2014) de unidades.

Minas Gerais é o segundo estado do Brasil com o maior déficit, sendo que no ano de 2013 o déficit habitacional no estado é de 493 mil unidades e em 2014, 529 mil. Esse déficit é apurado conforme a quantidade de unidades das moradias consideradas inadequadas. Este critério é determinado, por exemplo, se nas moradias existe água encanada, destinação adequada para o lixo, saneamento, forma de iluminação do domicílio, entre outros.  

Fotografias e Reportagem: Lucas D’Ambrosio